O presente de Tânia Carvalho olha um passado em pontas

No último acto do ciclo que lhe é dedicado, a coreógrafa estreia uma nova criação para a Companhia Nacional de Bailado. Até 4 de Março, S pode ser vista lado a lado com as anteriores Olhos Caídos e A Tecedura do Caos.

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BRUNO SIMÃO
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Não há em S símbolos cifrados, nem narrativas subterrâneas para o público desenterrar com as suas ferramentas pessoais. Não existem tratados existencialistas que sustentem cada gesto, nem personagens cuja densidade comande as acções em palco. Como de costume, Tânia Carvalho guiou-se pela intuição, pelas imagens que lhe são sugeridas e desatam a jorrar na sua imaginação e no seu caderno – onde aponta, com precisão, a estrutura e as várias sequências que quer ver dançadas à sua frente. Habitualmente, basta o estímulo inicial de ser desafiada a criar num determinado contexto para as ideias começarem a acumular-se sem esforço. E foi isso que aconteceu quando Paulo Ribeiro, então recém-nomeado director artístico da Companhia Nacional de Bailado (CNB) – substituindo Luísa Taveira, chamada para a administração do Centro Cultural de Belém –, lhe ligou a propor-lhe que fosse a primeira coreógrafa por si programada para a companhia.

O que então aconteceu, e desencadeou todo o processo criativo de S – que esta quinta-feira se estreia emparelhada com uma reposição, Olhos Caídos (peça para bailarino e sombra, 2010), num de três programas que até 4 de Março, no Teatro Camões, combinam várias peças, e em que se inclui ainda a revisitação de A Tecedura do Caos (2014) –, foi a imediata convocação involuntária de uma imagem na cabeça de Tânia Carvalho: La Sylphide, o ballet romântico em dois actos com que Filippo Tagliani induziu uma autêntica revolução no mundo da dança (a peça era interpretada em pontas, recurso desenvolvido pelo coreógrafo para possibilitar à sua filha dançar para lá das suas limitadoras características físicas). “Não é que a peça seja sobre La Sylphide”, diz a coreógrafa ao PÚBLICO, “mas essa imagem nunca me abandonou". "Podia ter surgido qualquer outra coisa que não tivesse que ver com o clássico, mas foi isto que me apareceu, toda a história das pontas, como isso começou e o que se pode fazer com essa técnica.”

Esse eco do mundo clássico sente-se também no cenário de S. Quando o primeiro grupo de bailarinas avança, pé ante pé, para o centro do palco, vemo-nos diante de um ambiente nocturno, num bosque misterioso e propenso a um deflagrar das mais variadas fantasias, evocador de um sem-fim de histórias contadas através dos bailados canónicos. Ao contrário do cânone, no entanto, e fiel à sua linguagem construída sobretudo pela força das formas e pela intensidade das imagens, Tânia Carvalho não investe em personagens nem tão-pouco em quaisquer impulsos narrativos.

Nesta nova peça, que marca o último acto do ciclo dedicado à criadora por três instituições lisboetas (os teatros municipais São Luiz e Maria Matos, além da CNB), há, ainda assim, um esboço de vários grupos distintos de bailarinos. Primeiro, as bailarinas mais claramente identificadas como românticas; depois, um segundo grupo de intérpretes, mais modernas; no meio, “os rapazes que estão entre umas e outras”; e o par final, mais contemporâneo, já se tendo apropriado de todas as linguagens prévias e, como ilustra a coreógrafa, “fechando uma espécie de círculo, uma vez que estão quase a voltar às românticas – não estão, na verdade, mas é como se fossem as mesmas pessoas, embora num outro tempo”.

De um ponto ao outro

Num dos momentos mais belos de S, românticas e modernas encontram-se pela primeira vez em palco, estranhando-se, deixando emergir uma situação de tensão. Depois percebe-se que essa tensão nasce de uma relação desigual. “É como se a moderna estivesse a ver a romântica e a romântica não pudesse ver a moderna”, esclarece Tânia Carvalho. Ou seja, por outras palavras, é o presente a conseguir olhar o passado, sem que o contrário seja, naturalmente, possível. A tensão, esclarece, não é propositada – embora a música de Diogo Alvim, aqui e ali, sublinhe esse desconforto –, até porque o desenho total da coreografia de S parte de um encaixe entre as linguagens que Tânia desenhou laboriosa, minuciosa e solitariamente durante uma residência nos Estúdios Victor Córdon. “Podia ter feito mais diferente e mais contrastante”, diz, “mas preferi assim": "Na verdade, quase podiam ser a mesma coisa.”

Não é tão textual quanto isso, mas, além da diferença de mundos e tempos vincada pelo figurino, a coreógrafa compôs o movimento das modernas enquanto observava um vídeo que registava o movimento das românticas. Próximo de uma simetria, ainda que ligeiramente dissonante. Em certa medida, S quase mostra a linha serpenteante que leva de um ponto ao outro, mas em que o passado (ou ponto de partida) nunca deixa de fazer parte do caminho e de se reconhecer no presente (ou ponto de chegada).

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