Os guardas, presos a si próprios

Quem de algum modo trabalhe com o universo prisional sabe bem que quem lá manda, em grande parte, são os dirigentes sindicais.

As prisões apenas são notícia quando algo de muito grave acontece ou quando são necessários alguns apontamentos “queriduchos” para encher espaço noticioso na televisão e na imprensa escrita, em épocas natalícias e afins. De resto, ninguém quer de facto saber do que lá se passa. Assim têm subsistido como espaços à parte, conhecidos por poucos, na prática redutos quase exclusivos dos seus profissionais e, em particular, dos guardas prisionais.

Ser guarda prisional, em Portugal e em todo o mundo, é difícil. O guarda de uma instituição de reclusão é também em boa parte um recluso. Convive diariamente com uma sensação permanente de insegurança, mesmo quando infundada. E com um quotidiano preenchido pela miséria generalizada entre os nossos esquecidos, temidos, culpados.

Para mais, em Portugal, aceita-se que possa ser guarda numa prisão alguém que se submete apenas a um curso breve, de poucos meses, recebendo uma formação tópica e casuística e sendo rapidamente posto num estabelecimento prisional. Tal como os directores e outros dirigentes das nossas prisões, que não precisam de nada mais do que serem designados para tal pelo director-geral.

Não há, ao contrário do que se passa noutros países, escolas de administração penitenciária ou uma carreira que forme, avalie e gradue o mérito académico e profissional. Um professor de uma reputada universidade francesa contava-me há pouco tempo, em escândalo, que um dos seus melhores alunos de mestrado em Direito se tinha candidatado à escola nacional de administração penitenciária francesa, com grande surpresa sua e de outros professores, para se formar, querendo ser dirigente num estabelecimento prisional. “Que futuro brilhante poderia ter! E vai desperdiçá-lo nas prisões...” Aqui, nem sequer esse lamento preconceituoso seria possível.

Quem de algum modo trabalhe com o universo prisional sabe bem que quem lá manda, em grande parte, são os dirigentes sindicais. Dado o poder real dos guardas naqueles espaços e a vantagem que há em manter um estado de coisas que não crie demasiado ruído mediático e outros problemas, aos guardas prisionais – não havendo lautos salários para distribuir – foram sendo dados diversos sinais de que eles estão fora de qualquer âmbito de fiscalização ou intervenção.

Assim se explica, por exemplo, que se mantenham habitações do Estado (dezenas, centenas?) para o uso de antigos guardas prisionais e familiares, sem qualquer justificação ou base legal – ou assim diziam as inspecções do Ministério da Justiça desde há muitos anos. Ou se tenha convertido a praia que está situada no Estabelecimento Prisional de Pinheiro da Cruz numa urbanização ilegal de férias, cimentada sobre as dunas, para funcionários do sistema prisional e até para magistrados e políticos, diz quem sabe, mesmo contra as instruções de ministros da Justiça, esses líricos.

Portanto, não espanta, perante este modelo histórico que não exige a qualificação, não fomenta o mérito, não premeia a qualidade e não atribui as devidas e transparentes recompensas, que possam os sindicatos dos guardas prisionais divulgar na imprensa, sem qualquer pejo, a localização de câmaras de videovigilância dentro de estabelecimentos prisionais ou detalhes das condições de segurança actuais desses estabelecimentos, como sucedeu ontem.  Apenas, note-se, como parte de um processo de retaliação por uma alteração do horário de trabalho em parte dos estabelecimentos prisionais, findando como um modelo exótico de trabalhar durante 24 horas, seguidas por um período de descanso de 48 horas...

Mudanças em sistemas pesados e complexos levam tempo e têm custos diversos. Mas mudanças que assumam de forma clara e cabal que a exigência de qualificação, a recompensa do mérito e a transparência são mais-valias para qualquer sistema serão sempre as decisivas. E essas continuam por fazer.

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