Romper com Erdogan

Face a tanto cinismo, as altas esferas da comunidade internacional parecem estar como os três macaquinhos da fábula.

Os curdos, e nunca é de mais repeti-lo, foram, tanto na Síria como no Iraque, o nosso dique, o nosso baluarte, a muralha de valentia e de energia que nos protegeu do Daesh. 

Por toda a parte, e certamente não menos na Síria do que no Iraque, eles foram o ferrolho que fechou as fronteiras cujas portas os exércitos iraquianos e turcos deixavam abertas e pelas quais chegavam, escapavam, partiam de novo os islamistas que, ao mesmo tempo que colocavam a região em suplício, vinham cometer atentados na Europa.

Alcançada a vitória, estes combatentes curdos, homens e mulheres, tiveram a ingenuidade de pensar que iriam poder viver, em paz, no território que tinham defendido e onde os seus foram mortos e descansam em paz.

E, devido a essa inocência, aí estão eles, mais uma vez, mas desta feita em Afrin, no Nordeste da Síria, perseguidos, torturados, assassinados, os seus restos mutilados – eles foram o nosso dique, o cordão sanitário que cercava a peste islâmica, e ei-los perseguidos pelo porteiro maquiavélico, esse vigilante das portas do Inferno, que é um Erdogan a transformar a sua geografia numa alavanca de chantagem sobre o Ocidente.   

Face a tanto cinismo, as altas esferas da comunidade internacional parecem estar como os três macaquinhos da fábula.

Os olhos vendados face ao martírio destes homens e destas mulheres que tanto são tão admirados numa altura como logo a seguir são negligenciados.

Os ouvidos tapados, sobretudo para não ouvir o barulho que fazem os canhões do neo-sultão – que tem o sarcasmo, a insolência e que, para sermos totalmente sinceros, num amistura de cinismo orweliano e de júbilo manhoso, faz um manguito ao chamar Operação Ramo de Oliveira.

Com o dedo sobre a boca, numa lamentável cobardia, fingimos acreditar nas palavras de protesto de humildade plenipotenciária e benevolente da propaganda de Ancara, e apenas sabemos repetir, acenando gravemente com a cabeça: "Não se passou nada em Afrin, nada."

Alguns – em Moscovo – vêem neste manto de humilhação e de ódio que os soldados turcos e a soldo da Turquia espalham no Curdistão sírio, o preço a pagar pela vitória da sua viscosa estratégia regional. 

Outros – em Washington – fazem habilmente o jogo das antecâmaras, os demiurgos do chá das cinco encontraram neste consentimento dado aos que estão a fazer a limpeza a solução para o seu novo desejo de ter paz sem ter que fazer a guerra.

Por todo o lado reina o mesmo longo e doloroso silêncio. Ou então há palavras que servem para nada: "O Oriente é complicado… incompreensíveis histórias de fronteiras e do alianças retomadas… para quê aborrecermo-nos com um país poderoso e soberano?" Ou então surgem os comentadores de café, todos esses maliciosos e preguiçosos que, com o nariz inclinado sobre o fundo dos mapas, já não levantam a cabeça, com medo de vislumbrarem a sua própria cobardia, apenas sabendo repetir sem cessar que não vale a pena morrer hoje por Afrin como não valeu morrer por Dantzig no passado…

É sempre a mesma história – infelizmente, uma história clássica nas democracias –, os melhores amigos durante um determinado tempo, os irmãos quando nos dá jeito, os camaradas de armas, apagam-se tão rapidamente como uma história no Instagram.

É a continuação da longa noite para os povos usados e depois abandonados como lenços de papel, os salvadores tornados excedentários, os heróis instrumentalizados, mas somente durante o tempo de uma batalha porque no que toca ao resto, são meros trocos no grande jogo das transacções geoestratégicas.

O que é inédito, é que tudo isto também é fruto do pacto com o diabo que fizémos com  Erdogan e que, muito simplesmente, já não é suportável.

A Turquia, tal como o gato de Schrodinger, pode, na realidade, e visivelmente, estar ao mesmo tempo na NATO e fora dela. Pode aspirar a abrigar-se debaixo do guarda-chuva, sem dúvida esburacado, da América, enqiuanto liquida, sem o esconder, aqueles que foram os melhores aliados dos EUA.

A Turquia tem generais ambidestros, que com uma mão assinam tratados de aliança eterna com Londres ou Paris e, com a outra, traem imediatamente os seus compromissos e, com o seu ramo de oliveira, golpeiam os seus supostos aliados.

A Turquia recicla os piores jihadistas, financia-os e subrepticiamente volta aenviá-los para o combate, ao mesmo tempo que este Estado policial continua a aspirar, como a Suíça, a Noruega ou a Bósnia, a ter uma parceria estratégica com a União Europeia.

E a Turquia tem um Presidente que a nossa fraquesa tornou forte, e por isso se sente, pelo menos até ver, suficientemente à vontade para, através dos seus ministros, fazer declarações insensatas sobre como o suposto massacre dos curdos não é nada comparado com a colonização da Argélia e por isso não permite que a França lhe dê lições de moral. 

Esta comédia atroz já dura há demasiado tempo.

Este ano de 2018, se não pusermos um travão a isto, ficará marcado por uma lápide negra: e uma cortina de ferro, turca, que se abaterá sobre o povo curdo.

Pôr travão a isto significa, hoje, romper, e não apenas "congelar", esta farsa em que se tornaram as negociações de adesão à Europa; dissolver a comissão parlamentar mista que continua a existir no Parlamento de Bruxelas; expulsar a Turquia de um Conselho da Europa que a condenou, entre parêntesis, 2812 vezes desde que lá entrou; e depois colocar mesmo, e seriamente, a questão da sua presença no seio da Aliança Atlântica.

Erdogan não nos dá outra opção.

Ou fazemos estes gestos de elementar firmeza – ou, ao horror do massacre dos curdos, juntar-se-á a vergonha de vermos rir o carrasco, e continuará sempre a rir, sobre as ruínas da nossa honra.

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