O massacre de Utoya não foi um jogo de vídeo

Num festival marcado por questões fracturantes e uma competição morna, o filme de Erik Poppe sobre o massacre de Utoya é uma desilusão que se perde no seu dispositivo cinematográfico. Muito melhor é Dovlatov, do russo Alexei German Jr.

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AGNETE BRUN

Berlim é, na formulação feliz de um colega jornalista, o “festival do tema”, do cinema “de mensagem”. Não é, por isso, surpresa nenhuma que o último filme anunciado para o concurso oficial seja um filme “interveniente”, que a tragédia dos tiroteios no liceu de Parkland, na Florida, tornou subitamente de uma urgência tópica. Mas há qualquer coisa que não bate bem em Utoya – 22. Juli, onde o norueguês Erik Poppe (nomeado no ano passado para o Óscar de melhor filme estrangeiro com A Escolha do Rei) reconstitui o massacre que o extremista Anders Breivik levou a cabo num campo de Verão do Partido Trabalhista Norueguês na ilha de Utoya, em 2011, e que causou 77 mortos. É um filme que quer falar da violência de extrema direita, dos massacres com armas de fogo, e do trauma que isso cria nos sobreviventes – mas que o faz num único plano-sequência de 72 minutos (exactamente o mesmo tempo que o massacre de Utoya durou), colocando a câmara ao nível dos jovens que percorrem a ilha tentando fugir aos tiros que ouvem à distância e que não sabem de onde vêm.

Utoya – 22. Juli não quer ser um simples filme de mensagem; assumindo-se como uma ficção inspirada em factos reais, quer propor ao espectador uma experiência, colocá-lo no centro da confusão e do medo e da fuga e do instinto de sobrevivência. Erik Poppe quer fazer-nos sentir a tragédia na pele, o tempo a dilatar-se ou a concentrar-se – mas não consegue nunca mais do que propor ao espectador um jogo de vídeo na primeira pessoa, ou uma experiência de “teatro imersivo” por interposto ecrã. Utoya – 22. Juli deixa de ser sobre o massacre de Utoya para passar a ser sobre o seu próprio dispositivo fílmico – “ah, é o filme do plano-sequência do massacre de Utoya”.

Mas se hoje recordamos O Couraçado Potemkine pelos celebérrimos planos do massacre das escadarias de Odessa, o filme de Eisenstein continua a ser mais do que apenas isso, ao passo que o de Erik Poppe é, apenas e só, o seu plano-sequência – uma demonstração impressionante e virtuosa de controlo formal que não existe enquanto objecto cinematográfico para lá desse virtuosismo, afogando a entrega de Andrea Berntzen (no papel de Kaja, a jovem cujo percurso acompanhamos) e anulando as evidentes boas intenções do projecto (desenvolvido com inteiro apoio das autoridades e dos sobreviventes).

As primeiras reacções a Utoya – 22. Juli foram extremamente divididas, o que parece ser apanágio da Berlinale de 2018. Houve um esboço de controvérsia ao redor de Operação Entebbe (fora de concurso), o thriller de José Padilha sobre o raid das forças israelistas ao avião da Air France desviado em 1977 por terroristas pró-palestinianos (no qual o irmão mais novo do actual primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, perdeu a vida) que desafia a versão oficial do Exército israelita. E reacendeu-se uma acusação de agressão a uma actriz pelo cineasta sul-coreano Kim Ki-duk, que teve lugar em 2013 mas foi agora trazida ao de cima pela presença do último filme do realizador, Human Space Time and Human, na paralela Panorama – levando uma organização assumidamente alinhada com o movimento #MeToo e que tem trazido a esta edição um sem número de excelentes interpretações femininas a ver-se alvo de acusações de hipocrisia, por dar tempo de antena a um realizador conhecido pela sua postura misógina.

Virtuosismo

Temos estado a falar de formalismo e virtuosismo, e isso é algo que interessará certamente ao presidente do júri, o alemão Tom Tykwer, tendo em conta a sua preferência pelos truques de encenação (lembremo-nos das três versões da mesma história em Corre, Lola, Corre ou das “bonecas russas” de Cloud Atlas, ainda os seus melhores filmes). E aí, para lá do plano-sequência único de Utoya – 22. Juli, haverá que levar em conta Dovlatov, do russo Alexei German Jr.. Que se podia também chamar "Uma Semana na Vida de Sergei Donatich", uma vez que acompanha o escritor e poeta Sergei Dovlatov, hoje considerado um dos grandes nomes da literatura russa do século XX mas que em vida nunca foi reconhecido, ou mesmo publicado, no seu próprio país.

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Dovlatov SAGa Films

Ambientado na Leninegrado (hoje São Petersburgo) de 1971, Dovlatov alinha entrevistas kafkianas a operários da construção naval fingindo serem os grandes escritores russos, visões surreais de esqueletos infantis descobertos durante uma escavação de metropolitano e sonhos com Brezhnev, Fidel e piñas coladas. O filme desenvolve-se em longos e tranquilos planos-sequência onde está sempre alguma coisa a acontecer no interior do enquadramento, com uma câmara em movimento perpétuo que ora remete para o formalismo alegórico de Tarkovski, ora para o virtuosismo histriónico do falecido Alexei German pai. Mas esse formalismo imersivo serve aqui propósitos diferentes; é menos uma questão de chamar a atenção para si próprio, e mais para mergulhar o espectador no cinzentismo ocre e deslavado de um estado burocrático que não compreende que a arte não é nem pode ser meramente utilitária. Dovlatov é um filme “com mensagem”? Se calhar é, mas antes disso é um filme que existe enquanto cinema, para lá do seu dispositivo formal. Erik Poppe podia aprender umas coisas com Alexei German Jr. 

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