Fogo no “coração” do budismo

Um incêndio em Lhasa, capital do Tibete, terá destruído pelo menos parte do Templo de Jokhang, um dos lugares sagrados mais importantes do budismo e património mundial desde 1994. O habitual controlo dos media por Pequim torna difícil avaliar à distância e extensão dos danos.

Fiéis rezam no Templo de Jokhang em 2014
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Fiéis rezam no Templo de Jokhang em 2014 Reuters/Jacky Chen
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O Templo de Jokhang é um complexo que ocupa 2,5 hectares no coração da cidade velha de Lhasa Reuters/Andrew Wong

As informações são ainda reduzidas e contraditórias. Que houve um incêndio no Templo de Jokhang, em Lhasa, capital do  Tibete, não há dúvidas, o que está por apurar é a sua gravidade.

Os relatos oficiais defendem que não há motivos para preocupações, mas as fotografias e vídeos disponíveis na Internet, publicados sob anonimato para evitar represálias do Governo chinês, mostram um enorme clarão provocado por chamas altíssimas, fazendo temer o pior.

Na década de 1950 a China entrou no Tibete, facto que é visto por muitos em todo o mundo como uma invasão de um território soberano, transformando-o, 15 anos mais tarde, numa província autonómica, o que é entendido pelos que se lhe opõe como a ocupação de um país por uma potência estrangeira. A China, sem surpresas, discorda, dizendo que libertou o Tibete de um regime opressivo e que este lhe pertence naturalmente.

A Xinhua, agência de notícias controlada pelo Partido Comunista Chinês, garante que o incêndio no templo, um dos mais importantes lugares sagrados do budismo, começou na manhã de sábado e que foi imediatamente extinto sem que haja mortos ou feridos a registar, mas, em conversa com o diário britânico The Guardian, Robert Barnett, um académico que conhece bem o Tibete e a sua relação com Pequim, autor do livro Lhasa: Streets with Memories, defende que a “quase ausência de informação” nos media sobre o sucedido durante quatro horas faz pensar o contrário.

Este silêncio dos meios de informação chineses, apesar de as chamas serem visíveis por toda a cidade, “aumentou o receio das pessoas de que alguma coisa séria tenha acontecido”, diz Barnett, que vive em Londres e tem recebido telefonemas de tibetanos alarmados com as eventuais consequências do incêndio.

“Rezo para que o fogo não seja sério e que os antigos edifícios não tenham sofrido muitos danos”, disse ao norte-americano The New York Times a jornalista, escritora e activista tibetana Tsering Woeser, que vive em Pequim. “Para os tibetanos, o Jokhang é o mais sagrado dos lugares sagrados.”

O Diário do Povo, o maior jornal oficial chinês, disse na sua edição online, escreve o mesmo New York Times, que o fogo deflagrou às 18h40 locais, mais de uma hora antes do pôr do sol em Lhasa, mas alguns dos vídeos disponíveis parecem mostrar as chamas já depois da noite cair, o que sugere que o fogo terá estado activo mais de uma hora.

Medo de falar

O incêndio terá começado quando o mosteiro estava prestes a receber uma multidão de visitantes que se preparava para celebrar o arranque do ano novo tibetano.

Lembra, por seu lado, Robert Barnett ao Guardian que é muito difícil conseguir informações independentes sobre o que realmente aconteceu no mosteiro budista que, com os palácios de Potala e Norbulingka, este último com um extraordinário jardim, está classificado pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) como património mundial desde 1994. Os media chineses estão sob escrutínio permanente do Governo e os jornalistas estrangeiros estão proibidos de entrar no território.

“É devastador para as pessoas assistirem a isto… [A princípio] parecia ser impossível que alguma coisa tivesse sobrevivido… Agora há esta incerteza”, admite Barnett. “Pode ser menos grave do que aquilo que se pensa, mas há um grande vazio de informação sobre o que aconteceu.”

Na conta que mantém no Twitter, foi mais contundente: “Fontes em Lhasa alegam que a polícia está a ameaçar todos aqueles que se atrevem a distribuir fotografias ou informação não oficial sobre o incêndio. […] As pessoas têm medo de falar.”

Nas redes sociais chinesas (o Twitter está bloqueado na China) há quem garanta, diz o New York Times, que o que ardeu foi apenas uma espécie de armazém e não uma parte significativa deste conjunto religioso.

O Templo de Jokhang é um complexo que ocupa 2,5 hectares no coração da cidade velha de Lhasa. É marcado por um grande pórtico e tem, como é habitual nestas construções de pedra e madeira, um pátio à volta do qual se organizam as acomodações dos monges e outras salas. É, segundo a Unesco, um “exemplo extraordinário do estilo budista tibetano”, influenciado pela China, a Índia e o Nepal.

No seu interior, além de valiosos manuscritos, encontram-se mais de três mil imagens de Buda e de outras divindades e figuras históricas. A mais famosa de todas, precisa o jornal inglês The Telegraph, é uma das três representações de Buda que terão sido feitas quando o fundador da religião estava ainda vivo e, acreditam muitos dos seus seguidores, foi por ele abençoada.

Escreve ainda a imprensa britânica que os esforços da China para controlar a narrativa no que toca a este incêndio vêm sublinhar a importância do mosteiro, tanto ao nível religioso como político, já que Jokhang tem sido frequentemente escolhido como cenário para os protestos contra a presença do Governo de Pequim no território (um deles aconteceu em 2008, com uma série de monges a manifestarem-se perante uma visita oficial de jornalistas estrangeiros promovida pelo Partido Comunista chinês, gritando “O Tibete não é livre”).

Em 2012, um onda de protestos pela independência levou a que várias pessoas se imolassem em diferentes locais da China.

Um conjunto único

A 3700 metros de altitude, no meio das montanhas, a área classificada como património mundial, de que o mosteiro de Jokhang faz parte, tem uma forte carga simbólica para o Tibete, tanto politica como espiritualmente.

Segundo a Unesco, o Palácio de Potala, desde o século VII residência de Inverno do Dalai Lama, líder político tibetano (o actual, Tenzin Gyatso, é o 14.º e vive desde 1959 na Índia, onde instalou aquilo que chama Governo do Tibete no Exílio), simboliza o lugar central que o budismo ocupa na administração do país. Construído na mesma época, Jokhang é um “complexo religioso excepcional”. Bem mais tardio, do século XVIII, o Palácio de Norbulingka deve ser visto como uma verdadeira “obra-prima da arte tibetana”.

A “beleza e a originalidade arquitectónica destes três locais”, continua a Unesco no texto em que justifica a sua integração na lista do património da humanidade, “a rica decoração e a integração harmoniosa na paisagem sumptuosa que os rodeia acrescentam valor ao seu interesse histórico e religioso”.

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