A ferida na Oxfam está aberta e não se sabe quando vai sarar

Fundada em 1942, a Oxfam é uma das maiores organizações de solidariedade do Reino Unido e do mundo. Começou com uma modesta loja de roupa em segunda mão, mas hoje conta com 650 pontos de venda. O escândalo em que está envolvida por causa da revelação de que funcionários às suas ordens pagaram a prostitutas durante uma missão no Haiti após o terramoto de 2010 está a abalar esta conhecida ONG.

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A organização, dizem alguns críticos, comportou-se mais como uma multinacional, empenhada em esconder os factos para não ser prejudicada Andres Martinez Casares/Reuters

Foi em plena II Guerra Mundial que um pequeno grupo de quacres, católicos e intelectuais se juntou na Igreja de Santa Maria, em Oxford, para discutir como convencer o Governo britânico a permitir que uma ajuda alimentar passasse o bloqueio dos Aliados e chegasse à Grécia, onde a fome estava a deixar mais mortos do que a violência da guerra. Ainda com o nome Oxford Committee for Famine Relief, foi essa a primeira acção de lobbying daquela que viria a ser uma das maiores organizações não-governamentais britânicas, sinónimo de loja de caridade e um nome credível de relatórios sobre a desigualdade.

E se ninguém adivinhava então que esse primeiro grupo se transformasse quase numa multinacional de ajuda e influência, muitos também não imaginaram que seria possível ser atingida por um escândalo como o recente: que funcionários da organização trocaram ajuda por sexo, primeiro no Chade e, depois, no Haiti; que a organização tinha queixas mas não seguiu com os processos; que voltou mesmo a contratar alguém que tinha sido afastado por comportamento incorrecto. A vice-directora Penny Lawrence afastou-se na sequência do caso.

A organização, que comemorou 75 anos em Outubro passado, começou com um grupo modesto, e só quatro anos depois é que surgiu a ideia que haveria de definir uma das suas facetas: uma loja de roupa em segunda mão em 1948, em Oxford – uma loja que ainda hoje existe. A ideia de vender os bens doados para conseguir fundos em vez de os doar foi inovadora na altura, e o primeiro empregado assalariado desta loja, Joe Mitty, contou como não sabia nada de vendas ou de atribuição de preços. “Mas tinha raiva e paixão, raiva por causa das desigualdades, e paixão por fazer algo”.

No primeiro ano a loja obteve 500 libras de receitas, mas Mitty insistiu e cinco anos mais tarde já tinha 10 mil libras de receitas anuais. O responsável das lojas também teve a iniciativa de juntar celebridades para ajudar a publicitar a Oxfam – um dos pontos altos foi, no auge da Beatlemania, os quatro Beatles fotografados com um cartaz de uma campanha de recolha de fundos contra a fome, “hunger £ million campaign”.

Da água potável ao comércio justo

Nos anos 1960, a Oxfam já era uma organização importante, depois de ter angariado 3500 libras para lutar contra a fome no estado de Bihar, Índia, em 1951, e mais tarde distribuir equipamentos para acesso a água potável para comunidades indianas, no que se tornou uma grande especialidade técnica da organização.

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A Oxfam procurou desde cedo acções-espectáculo na tentativa de fazer passar melhor a sua mensagem. Na imagem, uma acção no centro de Londres na véspera do Natal de 1967 para chamar a atenção para o problema da fome no mundo © Hulton-Deutsch Collection/CORBIS/Corbis via Getty Images

Pioneira na reciclagem nos anos 1970, foi também essencial no movimento para comércio justo nos anos 1990, quando foi nomeada para o Prémio Nobel da Paz em 1992 (o prémio foi atribuído a Rigoberta Menchú Tum pelo seu trabalho de reconciliação etno-cultural baseado no respeito pelos povos indígenas).

Foi também nos anos 1990 que a Oxfam britânica se juntou com outras nove organizações noutros países e se torna uma marca verdadeiramente global – hoje tem presença em 20 países (em Espanha, por exemplo, mas não em Portugal).

Mitty, o primeiro assalariado a trabalhar numa loja e responsável pela ideia de vender as doações e com as verbas tratar da ajuda, em vez de as encaminhar directamente para os locais onde poderiam ser precisas – entre as mais peculiares houve um burro vivo – passou de responsável de ligação com celebridades a personalidade mediática, e mesmo já reformado foi ele quem, em 2006, esteve na loja Oxfam de Notting Hill, Londres, para vender a Victoria Beckham um pequeno vestido preto por 19,99 libras.

Actualmente, a Oxfam tem 650 lojas no Reino Unido – e nenhuma rua comercial de uma cidade britânica está completa sem o letreiro verde da loja de caridade, que tem também lojas especializadas em livros e discos em segunda mão.

Nestas lojas, que em 2016 geraram quase 18 milhões de libras (mais de 20 milhões de euros) de receitas, trabalham 23 mil voluntários. Nestes espaços há ocasionalmente pequenos concertos ou performances – já passaram por lá Fatboy Slim ou Jarvis Cocker, The Kooks ou Hot Chip – para abrir o Oxjam, um festival de música cuja receita reverte também para a associação.

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As lojas da Oxfam fazem parte de paisagem urbana do Reino Unido Simon Dawson/Reuters

A ligação a celebridades e o apoio destas sempre foi essencial para as campanhas de angariação de fundos. Mas agora, na sequência do escândalo, pelo menos duas figuras importantes já se afastaram: a “embaixadora” Minnie Driver, apoiante da Oxfam desde os seus nove anos, retirou publicamente o apoio à organização, declarando-se “horrorizada” com as acções e a reacção da organização, e o mesmo fez o bispo sul-africano Desmond Tutu, dizendo-se “muito desapontando com alegações de imoralidade e possíveis crimes” de trabalhadores da organização.

Um provedor humanitário?

Para muitos, o problema não foram só as suspeitas de que membros da organização pagaram a prostitutas, trocaram ajuda por sexo, mas que a organização não fez o suficiente depois de alertada para potenciais situações de má conduta ou mesmo crime.

A organização, dizem alguns críticos, comportou-se mais como uma multinacional, empenhada em esconder os factos para não ser prejudicada, do que como uma organização cujo objectivo é defender os direitos humanos.

Dorothea Hilhorst, professora de Ajuda Humanitária e Reconstrução na Universidade Erasmo em Roterdão, nota que ainda não se sabe o suficiente sobre o caso, que está a ser investigado. Se é óbvio que algo que correu mal na forma como a organização lidou com a situação, não é assim tão evidente que a resposta tenha sido errada, defende.

“A questão não é se houve má conduta – ainda não se sabe o suficiente, mas é algo que pode acontecer em qualquer grande organização, de universidades, igrejas, governos – há sempre a possibilidade de haver algo que corra mal”, disse por telefone ao P2. “A questão é o que se faz a seguir.” E Hilhorst acha que a Oxfam não lidou muito mal com a situação: “Há um código de conduta rígido, a possibilidade de reportar de modo anónimo. Fortaleceram o sistema a nível das chefias.”

É impossível “ter 100% de certeza de que não vai acontecer nada” numa organização desta dimensão, diz, “porque o preço a pagar seria uma vigilância quase policial”. O que a académica defende é um sistema de provedor (ombudsman) independente de governos que pudesse supervisionar todas as organizações (“até porque há algumas que são tão pequenas que podem não conseguir lidar com casos destes”), e que actuasse em cada crise humanitária (“porque as urgências pedem contratações com rapidez”, o que pode facilitar a falta de verificação de background.)

Pedro Neto, director executivo da Amnistia Internacional, diz que viu as alegações sobre a Oxfam com “muita preocupação, alarme e até choque”. “Lamento que quem mais vai sofrer são as comunidades” ajudadas pela Oxfam e onde a organização tem “um trabalho muito válido”, comenta por telefone. “Esperamos sempre o melhor das pessoas que trabalham em desenvolvimento”, nota, mesmo que estas organizações tenham os mesmos problemas e desafios de outras, e que seja difícil para qualquer entidade com milhares de trabalhadores – seja ONG, governamental, ou empresa – em fazer o controlo.

Organizações revelam queixas

Pedro Neto explica como na AI há mecanismos de autovigilância e que, de acordo com um inquérito feito às secções da AI no mundo, nos últimos três anos foram registadas 47 queixas por assédio sexual, das quais 30 envolvendo staff, 12 voluntários e três membros da direcção (também voluntários), das quais 22 foram alvo de acções disciplinares e 12 de despedimentos.

O mesmo tipo de informação foi dada, em comunicado, pelos Médicos Sem Fronteiras, na sequência das notícias sobre a Oxfam: a organização francesa divulgou que investigou 40 casos de assédio ou abusos sexuais, dos quais 24 casos eram de abusos sexuais. “Dois destes eram situações de assédio ou abuso de funcionários dos MSF contra pessoas fora dos MSF (doentes ou membros da comunidade)”, dizia uma nota da organização. Na sequência de investigações, 19 funcionários foram despedidos.

Enquanto se discutem as potenciais consequências, Dorothea Hilhorst critica o aproveitamento que está a ser feito do caso: “Políticos populistas, do lado do ‘Brexit’, estão a aproveitar para pedir menos apoio governamental à ajuda.” E as receitas que a Oxfam obtém das suas lojas (20 milhões de euros) não tem comparação com o que recebe do Estado: mais de 36 milhões de euros.

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Pedro Neto, director executivo da Amnistia Internacional, diz que viu as alegações sobre a Oxfam com “muita preocupação, alarme e até choque” Andres Martinez Casares/Reuters

Pedro Neto, director executivo da secção portuguesa da Amnistia Internacional (AI), também fala do potencial perigo que é uso deste caso pelos políticos: “Governos criticados têm interesse em silenciar as ONG que os criticam”, diz. “O erro é dar material aos críticos”. Assim, defende uma rápida investigação, tanto interna como judicial, “para que o bom-nome seja resposto e não haja arrastamento para outras ONG essenciais ao bem-estar de muitas pessoas”.

Haverá arrastamento para o sector das ONG de ajuda ao desenvolvimento ou defesa de direitos humanos? Pedro Neto diz que é cedo ainda para fazer leituras sobre os efeitos do escândalo no futuro, mas admite “um certo contágio” – mesmo para a AI, ainda que faça um tipo de trabalho muito diferente do da Oxfam. A solução é as organizações insistirem na transparência para assegurar a credibilidade, sublinha.

“Vamos ver: o que aconteceu vai levar o sector a tomar medidas mais estritas, e a situação irá melhorar”, diz, pelo seu lado, Dorothea Hilhorst. “Mas vai demorar.”

Notícia corrigida a 19.2.2018: onde se indicavam 74 queixas por assédio, tratava-se de 47. 

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