Um olhar sobre o passado com vista para o futuro

Tal como em 2017, em 1990 o crescimento do PIB era o maior em 17 anos. Tal como agora, a economia tinha tido, anos antes, uma intervenção externa (na altura, do FMI) e tinha, depois disso, encetado um processo de convergência com a então Comunidade Económica Europeia.

1. O PÚBLICO convidou-me a escrever um texto que retratasse o “pico” de crescimento económico registado em 1990, quando desempenhava funções governativas no Ministério das Finanças. Curiosamente, tal como agora, também o crescimento do PIB nesse ano (7,86%) era o maior em 17 anos. Tal como agora, a economia tinha tido, anos antes, uma intervenção externa (na altura, do FMI) e tinha, depois disso, encetado um processo de convergência com a então CEE. Tal como agora, a aceleração do crescimento foi de par com uma expressiva melhoria das contas públicas, demonstrando – se necessário fosse – que a disciplina financeira e o crescimento não são incompatíveis (bem pelo contrário). No entanto, as semelhanças ficam por aqui. Os regimes económicos de há 27 anos e de hoje são profundamente diferentes, com um enquadramento externo e instrumentos de política não comparáveis. E por isso também não surpreende que os ritmos de crescimento não sejam comparáveis. Ainda assim, será útil reflectir sobre o processo de forte convergência registado a partir de 1985 e analisar que lições ele pode fornecer para o presente.

2. Entre 1985 e 1990, o PIB cresceu 35% (6,1% em média anual), cerca de 25 pontos percentuais acima da média europeia. Este desempenho não foi apenas fruto de uma conjuntura externa favorável e da integração europeia. Estes factores criaram um ambiente favorável: a economia internacional crescia, o preço do petróleo tinha uma forte queda e o novo quadro de integração favorecia o comércio externo e o investimento. Mas eles, por si só, não justificam o forte “gap” positivo de crescimento face aos nossos parceiros europeus. Isso foi possível graças à adopção de um conjunto de políticas consistentemente definidas, articuladas e prosseguidas que permitiram aproveitar e potenciar os benefícios do enquadramento externo e do intenso ajustamento interno decorrente do programa aplicado em 1983/1985.

3. Quando Miguel Cadilhe chegou ao Ministério das Finanças, em 1985, traçou vários objectivos, que prosseguiu, com determinação, nos anos seguintes: (i) disciplinar as finanças públicas; (ii) reduzir a inflação, quebrando o círculo vicioso provocado pela desvalorização sistemática do escudo e permitindo a redução das taxas de juro nominais; (iii) retomar o crescimento dos salários reais sem comprometer os ganhos de competitividade; (iv) lançar o processo de reprivatização do sector empresarial do Estado. Todos estes objectivos foram atingidos e, além do crescimento e da convergência, em 1990 a economia era estruturalmente bem diversa da que tinha saído do programa de ajustamento financeiro.

Um dos resultados mais notáveis foi a disciplina financeira imposta sobre o sector público como um todo (incluindo todo o Sector Público Administrativo, mas também o extenso Sector Empresarial do Estado). As necessidades de financiamento deste conjunto situavam-se na ordem dos 19% do PIB em 1985. Em 1990 tinham caído cerca de 13 pontos percentuais do PIB, graças à disciplina imposta sobre todos os entes públicos, incluindo as empresas (onde o Gabinete para a Análise do Financiamento do Estado e das Empresas Públicas, que tive a honra de dirigir, teve papel de relevo). Mas ponto essencial é que esta redução se fez a par de (i) uma profunda reforma fiscal que foi bem sucedida; (ii) do lançamento das bases de um verdadeiro mercado de dívida pública, até aí colocada administrativamente através do sistema bancário nacionalizado (com taxas de juro determinadas pelo próprio devedor…); (iii) da instituição do controlo orçamental sobre todos os fundos e serviços autónomos; (iv) da extinção legal da figura das chamadas “operações de tesouraria”; (v) da regularização de um extenso conjunto de dívidas do Estado e de outros entes públicos que se arrastavam no tempo.

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4. Os instrumentos de política monetária e cambial foram intensamente utilizados. Naquele tempo eram determinados administrativamente. Contra o pensamento provavelmente dominante – mas com fundamento em estudos económicos sólidos –, foi progressivamente abandonada a depreciação contínua e programada do escudo (o chamado “crawling peg”) e determinada, consistentemente, uma redução acentuada das taxas de juro, garantindo a respectiva paridade externa. Simultaneamente, foi instituída uma política de rendimentos activa, assente em acordos de concertação social, que assegurava um crescimento dos salários reais com base na partilha dos ganhos de produtividade entre empresas e trabalhadores. Esta combinação de políticas foi essencial para a redução da taxa de inflação, sem dúvida apoiada pelo comportamento dos preços do petróleo e da inflação externa. Hoje já poucos se recordarão que a taxa de inflação atingiu 28,4% em 1984 e estava ainda nos 22% em 1985. A subida da inflação durante o programa de ajustamento – muito induzida pela desvalorização cambial – tinha sido, aliás, um elemento crucial para a redução da procura interna, fruto de uma violenta queda dos salários reais (que em dois anos caíram cerca de 20%). A taxa de inflação reduziu-se para menos de 10% em 1987 e 1988, voltando a acelerar até 13,6% em 1990 (não sendo anormal a coincidência neste ano de um “pico” de crescimento e de inflação), mas retomando a partir daí um percurso irreversível de descida até aos níveis “europeus”.

O regime de fixação administrativa das taxas de juro e de câmbio e do controlo monetário directo através dos limites de crédito foi sendo gradualmente substituído por um regime normal de condução da política monetária pelo banco central com base nos instrumentos tradicionais de intervenção, bem como da determinação das taxas de câmbio pelo mercado. Tudo isto correspondia a uma profunda mudança estrutural na condução da política económica.

Com um equilibrado “mix” de políticas, a retoma da procura externa e a utilização dos fundos europeus, o investimento conheceu grande dinamismo, com incidência na modernização das infra-estruturas, mas também do sector industrial. Assim se conseguia um forte crescimento em ambiente de mudança estrutural (e de boa conjuntura externa), que levou a que fosse possível conciliar fortes ritmos de crescimento com uma confortável posição das contas externas.

5. Quase 30 anos volvidos, apesar de alguns paralelos, muita coisa mudou. Por um lado, algumas conquistas daquele tempo são hoje dados adquiridos e felizmente normais. A disciplina orçamental de todos os entes públicos, a colocação da dívida pública em regime de mercado, a ausência de intervenção administrativa nos mercados monetário e cambial, tudo faz parte do dia-a-dia e está ausente das preocupações das autoridades. No entanto, com a integração na zona euro, uma outra preocupação surgiu: a forte limitação dos instrumentos de política disponíveis a nível nacional. Na ausência de política monetária e taxa de câmbio autónomas, das políticas usadas há 30 anos restam a política de rendimentos e a política orçamental e mesmo esta condicionada pelas normas europeias e pelas restrições à utilização discricionária da política fiscal. Neste quadro, a grande questão que se coloca é a de saber com que meios pode a política económica garantir que o actual crescimento económico é duradouro e mais forte, dada a necessidade de convergência que o país continua a ter. Note-se que o “gap” do rendimento per capita (em paridades de poder de compra) se mantém praticamente constante em relação à Alemanha face por exemplo a 1995 (cerca de 38%) e até se agravou face à média da UE (de cerca de 20% para 22%). E todos sabemos como foi decepcionante o desempenho da economia após a entrada no euro, com um crescimento médio entre 2000 e 2015 de apenas cerca de 0,2% ao ano. Como demonstrado no livro que escrevi com Carlos Alves (A Banca e a Economia Portuguesa, 2017), tal resultou de uma alocação do investimento a sectores menos eficientes, predominantemente dos chamados não transaccionáveis. No mesmo trabalho se demonstra que o crescimento do PIB tem sido determinado essencialmente pelo crescimento económico na UE e por uma variável que reflecte as margens no sector exportador. Demonstra-se também que um rácio elevado de endividamento bancário no PIB tem um efeito negativo sobre o crescimento.

6. Estas conclusões representam um enorme desafio para a política económica: não está na sua disponibilidade determinar o PIB europeu; não dispõe da taxa de câmbio para alterar a relação entre preços externos e internos; o endividamento bancário está em níveis elevados mas as empresas precisam de financiamento para investir e crescer. A resposta estará no recurso exaustivo aos instrumentos disponíveis, de forma muito persistente e rigorosa. Antes do mais, nas políticas microeconómicas que reforcem a concorrência e criem um ambiente de negócios propício ao investimento e à inovação, eliminando as barreiras ao desenvolvimento da produtividade. Mas também numa política fiscal que tenha em conta a concorrência internacional na alocação de capital e utilize toda a margem de manobra permitida pelas leis europeias para criar os incentivos correctos ao investimento e à poupança. A resposta passa ainda pelo uso da política macroprudencial como meio de influenciar a afectação do crédito. E por uma política persistente de favorecimento da capitalização das empresas dos sectores mais produtivos. Tudo isto suportado pela melhoria da qualidade das instituições. Sendo certo que o caminho é muito estreito e o tempo perdido e os recursos gastos não nos dão margem de erro.

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