António Costa "é muito hábil", Rui Rio "um fazedor”

Antigo chefe de Estado em entrevista ao semanário Expresso faz o balanço de dois mandatos presidenciais e comenta a actualidade, com pinças e muita contenção. Sem se deixar deslumbrar pelos indicadores da economia portuguesa diz que é tempo de aproveitar este ciclo positivo para fazer reformas duradouras.

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Cavaco Silva em Março de 2017 Rui Gaudêncio

Cavaco Silva não foi ao congresso do PSD, o primeiro de Rui Rio como líder, mas a entrevista que dá este sábado ao Expresso não pode ser lida sem levar em conta o timing da sua publicação, ainda que o antigo presidente do partido seja parco em palavras sobre o actual. Diz o semanário que esta longa conversa impressa em 12 páginas da revista vem fechar um leque de entrevistas com os antigos Presidentes da República, depois de ouvidos Ramalho Eanes e Jorge Sampaio, e que é a primeira depois de o economista que foi chefe de Governo e chefe de Estado ter saído de Belém.

Retirado da política activa, menciona-o várias vezes, quase tantas como aquelas em que remete pormenores sobre determinado assunto para as suas “Memórias” (Quinta-feira e outros dias, Porto Editora, 2017), Aníbal Cavaco Silva continua a não se deslumbrar com a coligação no Governo, a que deu posse muito contrariado porque, apesar de tudo, era a melhor das alternativas, e garante que não alinha “nos foguetes de cada vez que sai um número do INE”. Para este economista, antigo primeiro-ministro duas vezes, antigo Presidente da República outras duas, o país está simplesmente a “beneficiar de uma envolvente externa extremamente favorável”, marcada, por exemplo, por taxas de juro muito baixas, pelo crescimento económico da União Europeia, coisa que não se via há muito tempo, e pela deslocação de turistas de outros destinos para Portugal.

Sem querer dar lições públicas ao Governo de António Costa, Cavaco não deixa de dizer que é importante aproveitar os ciclos positivos como o que estamos a viver, com uma conjugação de factores difícil de encontrar, para fazer reformas estruturais que ajudem a proteger o país da crise externa que há-de chegar. E identifica áreas em que é preciso intervir para corrigir desequilíbrios, elencando a sua lista de preocupações: “O enorme endividamento do país, a insustentabilidade do Sistema Nacional de Saúde e do sistema de Segurança Social, a baixíssima taxa de poupança das famílias – que está a um nível historicamente baixo –, a falha de capital, o inverno demográfico, a baixa produtividade, a reforma do Estado.”

No plano económico, Cavaco explica também porque é “frontalmente contra a reestruturação da dívida”, algo que, a acontecer, poderia levar os bancos à falência, criando uma “situação dramática” para o sistema financeiro, com as empresas portuguesas a desvalorizarem e o país a perder credibilidade aos olhos dos investidores e do mercado. Defende o economista que quem acredita nessa reestruturação é porque não se deu ao trabalho de ir verificar nas mãos de quem está a dívida do país – “a maior parte da que não pertence às instituições está na posse dos bancos, companhias de seguros e fundos de pensões”, esclarece.

Agora e sempre a comunicação social

É a partir do plano internacional, e tendo o Presidente francês por pretexto, que Cavaco Silva volta a falar da tensa relação entre política e media. Elogia em Emmanuel Macron a forma de governar e a sua relação com a comunicação social. Nos discursos do político francês, que leu atentamente, Cavaco Silva encontrou frases muito semelhantes às que escreveu nas suas próprias memórias e que ilustram bem a sua estratégia de distanciamento entre políticos e jornalistas, atitude que o antigo chefe de Estado português sempre cultivou: “Estou a pôr fim à cumplicidade entre a política e os media” ou “Enquanto Presidente não podemos ter o desejo de ser amados, o importante é servir o país e levá-lo para a frente”.

Foi de Francisco de Sá Carneiro, antigo primeiro ministro e líder do PSD, duas funções que Cavaco Silva também desempenhou, que o ex-governante recebeu um conselho que adoptou e que acabou por ditar a forma como se relacionou com a imprensa, quer como chefe de Governo, quer como chefe de Estado – perante um problema, reunir o máximo de informação possível, estudá-la e procurar resolver a situação tendo sempre em vista o superior interesse do país e sem preocupações quanto à “diferença entre opinião pública e publicada”.

Quando os jornalistas do Expresso quiseram saber se as suas palavras sobre a relação política/media podiam ser lidas como uma crítica ao estilo do actual Presidente, Marcelo Rebelo de Sousa, outro social-democrata, Cavaco respondeu no tom peremptório a que habituou os portugueses: “Tomei por princípio não fazer comentários nem sobre os meus antecessores nem sobre quem me sucede.”

Nesta longa conversa com o semanário, o economista garante ainda que chegou ao fim dos seus mandatos “sem frustrações especiais, sem desilusões”, e com o sentimento de dever cumprido. Diz, sem reservas, que foi e continua a ser “uma pessoa de muita sorte” – na família, na vida académica, profissional e política.

Deu posse ao Governo de coligação chefiado por António Costa a contragosto, não o nega, mas fê-lo por ter chegado à conclusão de que seria melhor do que deixar o executivo PSD/CDS em gestão até à eleição do Presidente que lhe iria suceder.

"O nosso caso é sui generis. Esta solução [de governo] teve a oposição muito forte no passado dos dirigentes socialistas com quem trabalhei — todos! Um dia contarei o que eles me disseram sobre o Bloco de Esquerda e o PCP.”

Apostado em evitar considerações detalhadas sobre a coligação no poder, reservando o que sobre ela pensa para o Conselho de Estado  – “ainda estou na fase de ter muito cuidado em relação a comentários públicos” –, Cavaco Silva alerta para a necessidade de criar mecanismos que envolvam os jovens portugueses na política. “A nossa democracia está consolidada, não tenho receio quanto ao seu futuro”, diz, mas é preciso atender à “qualidade” dessa democracia e, para isso, há que rever a forma como os partidos funcionam.

Com as forças políticas a fecharem-se cada vez mais, adverte, está a alimentar-se um sistema em que “os mais competentes e qualificados podem ser derrotados pelos menos competentes e qualificados” e a criar um cenário que não é propício a uma desejável renovação. “O nosso quadro partidário tem-se mantido muito resiliente”, algo que é verdade também no PSD, a que pertence. E aos que possam vir a duvidar do que diz, Cavaco sugere-lhes que compararem a Assembleia Constituinte, de 1975, com a actual.

Rui Rio é um “fazedor”

Na Justiça, o antigo governante deixa elogios a Joana Marques Vidal, manifesta a sua estranheza na forma como a eventual substituição desta procuradora-geral da República começou a ser discutida a dez meses do fim do mandato e mantém uma absoluta reserva no que toca a comentar a actuação do Ministério Público em relação a Angola.

Quanto à recente eleição de Rui Rio para a liderança do PSD, reincide na contenção autoimposta enquanto homem “afastado da vida político-partidária”, mas sem que isso o impede de lhe reconhecer “algumas qualidades […] importantes para os tempos que correm” e de lhe elogiar o carácter: “Tenho dele a impressão de que é um homem honesto, educado – o que também começa a ser importante na política –, que é um fazedor, que tem um sentido de serviço público e que também é um pouco teimoso no seguimento do interesse nacional.”

Usou da mesma contenção quando os jornalistas lhe pediram que se pronunciasse sobre António Costa: “Tivemos muitos diálogos aprofundados depois de ele ter sido eleito líder do PS e quando se colocou a possibilidade sui generis que temos neste momento em funções, foi sempre muito correcto e tenho que reconhecer que é um político muito hábil.”

Foi talvez quando se pronunciou sobre os incêndios florestais do ano passado e as dezenas de mortos a eles associados, “uma tragédia anormal num país com a dimensão do nosso”, que o antigo Presidente foi mais contundente. Apontou o dedo ao Governo e falou numa necessária e abrangente reforma do Estado.

Reconhecendo não ter informação suficiente sobre a actuação da Protecção Civil, Cavaco Silva não se coibiu de afirmar, a partir do que foi dito e escrito, que houve um “grande falhanço da parte do Estado naquilo que é mais importante, a protecção da vida das pessoas”, porque houve “descoordenação” e “não estavam em postos de comando as pessoas certas”.

“Se temos um Estado com demasiada grandeza mas não temos uma administração pública com as capacidades adequadas, uma de duas: ou se reduz a dimensão do Estado ou se melhora a capacidade da administração pública e de comando do próprio Governo. A reforma do Estado é uma questão importante.”

Numa entrevista longa em que houve ainda tempo para falar de Defesa, comparar os tempos em que foi primeiro-ministro com aqueles em que assumiu a Presidência, e destacar algumas das crises governativas com que teve de lidar sobretudo no último mandato em Belém, Cavaco Silva distinguiu a sua intervenção no dossier do estatuto político-administrativo dos Açores como o mais importante contributo que deu para a defesa do interesse nacional. “Foi uma luta quase heróica, não só contra o governo regional dos Açores, mas contra toda a Assembleia da República. Eu estava isolado numa matéria que considerava estar a pôr em causa a nossa democracia e que a nossa opinião pública não percebia.”

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