Dizem que os novos vinhos estão a ameaçar a tipicidade. Coisa de velhos.

Se o vinho não encaixa nas classificações regionais existentes, então, se calhar, está na hora de criar novas categorias.

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Benoit Tessier

A tipicidade é necessariamente uma virtude no vinho?, pergunta  Jancis Robinson na sua última crónica no Financial Times. A crítica e escritora de vinhos inglesa não nos dá a resposta, preferindo antes justificar a interrogação com as mudanças que o mundo do vinho está a viver, em particular com a erupção dos chamados vinhos selvagens, os ditos “naturais” ou similares. Vinhos de baixa intervenção enológica com cada vez mais seguidores no mundo e que nos começam a obrigar a questionar o conceito de denominação de origem e os critérios de avaliação das câmaras oficiais de provadores.

No vinho, como em muitas outras áreas da nossa vida, nunca se experimentou tanto como agora. É um fascinante mundo novo que se está abrir, até porque é um tipo de experimentalismo que não resulta da evolução tecnológica. Pelo contrário, é uma resposta ao excesso de tecnologia no vinho. Depois da era Parker, estamos a viver uma espécie de contra-revolução, um back to basics com algo de romantismo e nostalgia, de provocação e irreverência e também de engajamento ambiental e de oportunidade de negócio.

O lado bom deste fenómeno é poder fazer diferente com menos, respeitando mais as castas e o lugar. Mais: com este movimento, está-se a recuperar tradições antigas, vinhas perdidas, regiões sem nome e castas em vias de extinção. O lado mau, se o tem, está nos próprios produtores, muitos dos quais, ao procurarem fugir ao unanimismo e ao politicamente correcto, se deixaram contagiar por uma certa arrogância intelectual, adoptando uma visão maniqueísta do vinho que os leva a querer impor o seu gosto, desprezando o dos outros. É, mais uma vez, a confirmação da metáfora da Quinta dos Animais, de George Orwell.

Mas o que é realmente importante destacar neste movimento alternativo é a sua dimensão (já se percebeu que não estamos perante mais uma moda passageira) e o seu impacto sobre as denominações de origem e a tipicidade de cada região. Um vinho tinto de Rufete com 11 graus de álcool, vinificado em ânfora de barro e de cor aberta, pode ser considerado um Douro típico? E um branco de Bical e Maria Gomes feito com grande arejamento e estágio em tonel, de aroma pouco definido e com naturais notas de oxidação mas com uma riqueza e uma frescura magníficas, pode ser classificado como Bairrada? O Pai Abel Chumbado, da Quinta das Bágeiras, por exemplo: por que razão este branco tem que ser vendido como vinho de mesa, se o produtor acha que o vinho está bom e que os seus “defeitos” fazem parte do estilo do vinho?

Antes das respostas, vale a pena dizer que a invenção das denominações de origem foi um grande progresso civilizacional. Num mundo tão competitivo e tão vasto, é importante haver referentes. Imaginem o que seria vivermos sem regiões demarcadas, em que cada produtor fazia o vinho que quisesse?

Até agora, o modelo existente tem funcionado e sido útil. Cada região tem as suas regras e um perfil de vinho bem definido e só os vinhos que se encaixem nesse perfil podem ostentar o selo da denominação. Essa decisão está nas mãos de um conjunto de provadores oficiais e admite recurso para uma segunda câmara, mais independente. Os provadores oficiais são, sobretudo, preparados para detectar defeitos, o que também faz todo o sentido.

Mas o mundo do vinho está a mudar demasiado depressa e nem os organismos reguladores, nem as câmaras de provadores, nem mesmo o grosso dos consumidores, e até os críticos de vinhos, estão a acompanhar essa mudança. É tudo demasiado novo e quem decide ou classifica está cada vez mais velho e enquistado nos seus gostos e preconceitos.

A existência de um perfil de vinho bem definido para cada região é uma vantagem competitiva nos dias de hoje. Esse perfil resulta, sobretudo, do clima, das castas, dos solos e da tradição. Mas perfil bem definido não significa homogeneização. Todas as denominações contemplam uma vasta lista de castas autorizadas e os solos (e, em alguns casos, até mesmo o clima) não são todos iguais. Os métodos de vinificação também não. As possibilidades de fazer vinhos diferentes são, pois, infindáveis. Para acomodar essa diferença existem diferentes classificações (que variam de região para região), como Colheita, Reserva, Grande Reserva, Garrafeira, Clássico, Nobre, etc. Um Rufete com 11 graus de álcool, vinificado em ânfora de barro e de cor aberta, pode não ser um Douro típico, mas será que é menos Douro do que um vinho tinto de Touriga Nacional, Touriga Franca, Tinto Cão e Roriz com 14,5% de álcool, feito em lagar de granito e com estágio de 12 meses em barrica nova? A ânfora não é típica do Douro e podemos discordar do seu uso, mas as uvas, os solos e o lugar são Douro, e isso é o mais importante. As castas e o lugar são os elementos vitais de uma denominação de origem. O método de vinificação pode ser determinante na obtenção de um certo estilo de vinho, mas ao fim de alguns anos o que vai sobressair nesse vinho é a marca das castas e do lugar de origem.

Se o vinho não encaixa nas classificações regionais existentes, então, se calhar, está na hora de criar novas categorias, em vez de chumbar vinhos bons mas diferentes e de os remeter para essa categoria indiferenciada chamada Vinho de Mesa, onde cabe tudo, desde vinhos bem nacionais a vinhos comprados a granel em Espanha ou no Chile. Porque não criar uma categoria chamada “Vinho Experimental” ou “Vinho de Baixa Intervenção”, por exemplo?

Mas antes disso é necessário rejuvenescer e requalificar as câmaras de provadores, preparando-as também para os novos vinhos, sem esquecer o seu papel essencial: detectar defeitos. Um vinho com defeito óbvio, por muito que agrade ao seu produtor e por muitos seguidores que tenha, deve mesmo ser chumbado. No entanto, também aqui é preciso ter a mente aberta e não confundir defeito com estilo. Um branco da Quinta das Bágeiras feito intencionalmente de forma oxidativa pode desviar-se do perfil típico da Bairrada, mas, mesmo assim, ser extraordinário. Faz sentido chumbá-lo?

Por isso: a tipicidade é uma virtude? Sim, é uma grande virtude, desde que entendida em toda a sua abrangência e não seja limitadora da experiência e da criatividade, que é o que nos faz avançar. Os vinhos diferentes não devem ser encarados como uma ameaça às denominações de origem, mas sim como uma dádiva, porque permitem aumentar a diversidade das regiões, tornando-as mais ricas e apelativas.

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