Os vinhos do Vale de D. Maria têm direito a um B.I.

Numa prova das 20 primeiras 20 edições dos vinhos da Quinta de Vale de D. Maria deu-se conta do tempo, dos estilos de enologia ou das variedades do clima; mas deu-se também conta que em todos há uma identidade única. É terroir, diriam os franceses.

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Nas memórias do rio Douro sempre constou a certeza de que os seus afluentes são muitas vezes mais acolhedores para os vinhedos que o próprio vale central. O rio Tua não coube nesta apreciação por ser feito de granito e de ravinas, mas as encostas do Côa, do Pinhão, do Tedo ou do Torto sempre foram lugares de desejo para a produção de grandes vinhos. Quando se quer contar a história da Quinta do Vale de D. Maria, é por aqui que se deve começar. Pela margem direita do vale do Torto, onde a natureza concede aos vinhos o que, tantas vezes, nem o mais talentoso dos enólogos é capaz de inventar: carácter, distinção e, principalmente, muita classe.

Os vinhos tintos do Vale de D. Maria, hoje uma empresa na órbita da Aveleda, estão há mais de uma década na curta e exigente lista dos melhores do Douro (e, por consequência, do país) por cada uma das suas muitas características, mas principalmente pela sua personalidade singular. A delicadeza da sua fruta, o toque balsâmico dos seus aromas, a sua estrutura fina, a textura sedosa e requintada e, principalmente, a sua extraordinária acidez natural combinam-se para dar origem a vinhos que proporcionam um enorme prazer de prova. Parece que em cada um deles há sempre algo mais a descobrir a cada trago – o atestado do que vulgarmente se designa por complexidade.

Numa viagem por 20 anos de vinhos do Vale de D. Maria é possível identificar as marcas do envelhecimento, as características climáticas de cada ano e, em perspectiva, podem-se também definir pelo menos três fases determinadas pelos conceitos de enologia do tempo, pelo conhecimento e pela maturidade das vinhas que os originaram. Mas, de 1996 a 2014, é igualmente possível encontrar linhas de continuidade determinadas por aquele lugar do vale do Torto. A frescura, a mineralidade, a tensão dos tintos do Vale de D. Maria são um trunfo com direito a um Bilhete de Identidade. Podemos beber estes vinhos com ou sem comida sem que haja o risco de fadiga do palato. Podemos bebê-los razoavelmente novos ou já com duas décadas que o prazer está garantido – embora, sendo vinhos do Douro, fiquem muito melhores após meia dúzia de anos de garrafa.

Cristiano Van Zeller, o rosto maior deste projecto, faz parte de uma família ligada ao Douro há séculos – a Quinta de Roriz ou a majestosa Noval fizeram parte do seu património. E foi depois da venda da Noval aos franceses da Axa, em 1993, que surgiu a ideia de adquirir integralmente a Quinta do Vale de D. Maria, que estava na posse da família da mulher, Joana, há dois séculos. O que outrora fora uma grande quinta duriense tinha-se reduzido a uma vinha velha de dez hectares e a uma série de edifícios em ruinas. Quando Cristiano e Joana tomaram posse plena da propriedade, em 1996, a quinta estava arrendada ao grupo Symington, que produzia ali uma das bases para os vintages da Smith & Woodhouse.

Ainda nesse ano fez-se a primeira experiência na quinta. Sinal dos tempos, a prioridade não era o vinho do Porto (que se produz e continua a produzir com belíssimos resultados), mas a nova geração dos DOC Douro. Em 1996 produziram-se 2400 litros de vinho, vinificado na Quinta de Nápoles numa parceria entre Cristiano Van Zeller e Dirk Niepoort. Passados estes anos, este vinho está ainda numa forma soberba. Fruto de um ano difícil (mas também de uma outra era da enologia), tem apenas 12% de volume de álcool. Muito vivo na boca, com uma excelente frescura e um longo final, pode afinal considerar-se como o cartaz de uma estreia auspiciosa.
Para lá dos seus atributos naturais, o 1996 do Vale de D. Maria permite abrir uma discussão interessante sobre os anos nos quais os DOC Douro provenientes das zonas mais quentes do vale e dos seus afluentes mais podem brilhar.

Nos vinhos que se seguiram ficou provado que os melhores anos para os grandes Vintage não são necessariamente os melhores anos para os grandes tintos – no caso do Vale de D. Maria, há que excluir o 2011, ano de grande Vintage e, no caso, de um tinto de grande classe. Prove-se o 1998, que, com as suas décadas, está numa forma magnífica – foi uma das estrelas da prova dos 20 anos da casa e é um vinho ainda com muito futuro. Ou o 2008. Ou o 2010, que começa agora a entrar numa fase de definição muito prometedora. Ou, ainda, o 2012 – um dos grandes tintos do Douro da presente década.

Se em 2012 uma prova vertical dos Quinta do Vale de D. Maria tinha provado a grande capacidade destes vinhos para crescerem com o tempo sem perderem a sua tensão, a sua dimensão de fruta ou as notas de arbustos profundamente durienses, ou a sua mineralidade, a revisitação da memória de duas décadas da quinta confirma todas essas notas de prova. Seja com Cristiano Van Zeller, com Sandra Tavares da Silva (que se estreia em 1999), com Joana Pinhão (a actual enóloga residente), o que distingue estes vinhos é acima de tudo a sua deliciosa previsibilidade.

Podemos apreciar mais a concentração de um vinho como o de 2003 ou de 2007 ou a maior elegância de um 2006 ou de 2009; mas é possível estabelecer entre todos um óbvio DNA. No planeta do vinho onde a padronização continua a ser a regra, que melhor elogio se pode fazer a uma marca?

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