A casa da democracia e os teatros do poder

A Casa da Arquitectura, em Matosinhos, inaugura exposição que reflecte sobre a relação entre o espaço arquitectónico e os sucessivos sistemas políticos que coincidiram com a história do mosteiro-palácio de São Bento.

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A Assembleia da República fotografada, hoje, por Paulo Catrica Paulo Catrica
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Quem, neste sábado, se deslocar à Casa da Arquitectura (CA) vai já poder ver aí instalada Medida Incerta, as cinco peças com espelhos coloridos com que José Pedro Croft representou Portugal na Bienal de Arte de Veneza de 2017, e que a Câmara de Matosinhos entretanto adquiriu para o espaço da instituição inaugurada em Novembro. Mas, hoje, o pretexto para uma vista à Casa será outro: a inauguração, pelas 17h, da exposição A Casa da Democracia: entre Espaço e Poder, comissariada pela arquitecta Susana Ventura.

Instalada na segunda galeria do edifício, e permitindo um diálogo em trânsito com a mostra inaugural da instituição, Poder Arquitectura (que se mantém patente até 18 de Março), a nova exposição dá sequência ao protocolo que a CA celebrou em Janeiro com a Assembleia da República (AR) com vista a assegurar o tratamento arquivístico dos projectos arquitectónicos e da história dos edifícios que actualmente acolhem o Parlamento, desde a construção, no final do século XVI, do Mosteiro de São Bento da Saúde até ao acrescento, no final do século passado, do edifício anexo projectado pelos arquitectos Fernando Távora e Bernardo Távora.

Num cenário desenhado pela arquitecta Luísa Bebiano, Susana Ventura quis evitar o discurso historicista. “A minha visão não é do ponto de vista do historiador; interessa-me trazer algo de novo: pensar sobretudo na relação entre espaço e poder, mostrar como é que a arquitectura, o espaço, condicionou o sistema político, e vice-versa, como é que este usou e se apropriou da arquitectura”, diz a comissária ao PÚBLICO nas vésperas da inauguração.

Luísa Bebiano concebeu para A Casa da Democracia: entre Espaço e Poder uma estrutura oval de madeira, que, no interior, acolhe nove fotografias (mais três, do lado de fora) com que Paulo Catrica registou o Palácio de São Bento na actualidade e nos seus diferentes espaços: hemiciclo, gabinetes, passos perdidos, exterior...

No verso, como se se tratasse dos bastidores, revisita-se a história do edifício e da sua inscrição no tecido urbano de Lisboa: uma planta da cidade de 1807, aguarelas, o projecto do arquitecto francês Jean-François Colson para as duas câmaras do Parlamento no século XIX (sala dos Pares do Reino e sala dos Deputados), desenhos de alçados do mosteiro e também da frontaria projectada por Ventura Terra, ao lado de outras plantas, fotografias, pinturas...

“A forma circular apareceu logo no início, e vem muito da leitura de textos de Jonas Staal, que faz equivaler a forma à ideologia”, explica a comissária, referindo-se ao artista visual holandês (n. 1981) que tem estudado e trabalhado o tema dos parlamentos em diferentes países e a relação da arte com a democracia e a propaganda. Há aqui uma estrutura que Luísa Bebiano concebeu também “a partir da ideia de espaço cenográfico, que a Assembleia [da República] também é” – acrescenta Susana Ventura –, e na qual são expostas as fotografias de Paulo Catrica.

Nas paredes a envolver a estrutura oval, haverá outros testemunhos documentais, mas também a projecção de uma imagem estática de João Paulo Feliciano, que integrou a exposição O Poder da Arte realizada pelo Museu de Serralves na AR, em 2006. E ainda, num registo performativo, uma banda sonora com discursos de deputados seleccionados a partir dos arquivos do Canal Parlamento, desde 1994.

“Tentei ir buscar testemunhos de momentos históricos marcantes, como a intervenção da Natália Correia, a entrada de Portugal na Comunidade Europeia, ou no euro, mas isso não foi possível”, explica Susana Ventura, realçando que a exposição foi pensada e montada no período escasso de um mês.

A vencedora do Prémio Távora 2014, também diplomada em Filosofia, explica ter pretendido apresentar “um conteúdo crítico” na exposição. “Interessava-me levar a pensar a política e a cidade, mais do que a própria arquitectura; mas também numa perspectiva filosófica”, acrescenta, dizendo ter-lhe também interessado convocar a linguagem das artes: a cenografia de Luísa Bebiano, a fotografia de Paulo Catrica, a instalação de Feliciano.

A Casa da Democracia: entre Espaço e Poder é organizada em quatro núcleos históricos e temáticos. Começa com O centro: agenciamento de poder, em que a curadora convoca este conceito de Gilles Deleuze para mostrar que o primitivo mosteiro beneditino era já no século XVII a expressão do poder religioso, afirmado do ponto de vista territorial mas também estético – daí o convite a Baltazar Álvares, “um arquitecto do tempo do maneirismo ou estilo chão conventual”, em que os edifícios marcavam o território numa Lisboa já então em expansão urbanística para ocidente.

Passa pela sobrevivência do mosteiro ao Terramoto de 1755, quando o edifício pouco sofreu e passou a “funcionar como uma espécie de anti-Baixa”. Percorre depois a transformação em Palácio das Cortes, após a revolução liberal de 1820; a reconstrução, após o incêndio de 1895, por Ventura Terra, que lhe atribui a dimensão monumental que hoje conhecemos, e que, durante o Estado Novo, foi ainda mais reforçada com a intervenção de Cristino da Silva, que “quis aniquilar a ideia de espaço público, criando mesmo uma Zona de Protecção ao Palácio da Assembleia Nacional”, nota Susana Ventura. E chega aos tempos pós-25 de Abril de 1974, quando vê de novo a população apoderar-se desse espaço – vejam-se as manifestações dos meses pós-revolução, com a ocupação dos jardins, a inscrição de grafitti nas paredes, etc.

Depois da presente exposição em Matosinhos – onde ficará patente até 15 de Abril, num programa que incluirá a realização, nesse mês mas em data ainda a definir, de um seminário com a participação de arquitectos, deputados e outros convidados –, a Casa da Arquitectura irá apresentar em Lisboa, no próprio Palácio de São Bento, em 2019, a pretexto do bicentenário do constitucionalismo em Portugal, uma grande mostra que revelará já o resultado do levantamento que actualmente está a fazer dos arquivos do Parlamento.

Notícia corrigida: explicando a estrutura central da exposição, Susana Ventura disse que ela surgiu da ideia de criar “uma forma circular”, e um “espaço cenográfico, que a Assembleia também é”, e não da “ideia de um circo”.

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