Liberdade de expressão, 2 – Censura, 0

O dia 9 de Janeiro de 2018 ficou marcado por duas decisões judiciais com que nos devemos regozijar.

A liberdade de expressão é um bem inestimável e a pedra de toque de uma sociedade democrática. Convém não esquecer, no entanto, que é uma arma com dois gumes: se, por um lado, nos permite dizer, ler e divulgar aquilo com que concordamos, por outro, permite o mesmo grau de existência pública às ideias de que discordamos.

Recentemente, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), no caso GRA Stiftung gegen Rassismus und Antisemitismus (GRA) contra a Suíça, teve de se pronunciar sobre a queixa apresentada pela GRA, uma organização não-governamental (ONG) que promove a tolerância e o combate à discriminação racial e que fora condenada criminalmente pelo mais alto tribunal suíço por ter classificado como “racismo verbal” o discurso de um político do Partido Popular Suíço.

O discurso fora proferido por um jovem dirigente político na campanha do referendo para a proibição da construção de minaretes na Suíça que aquele partido promovia e que veio a aprovar a referida proibição. O jovem político, entre outras coisas, afirmara que chegara a altura de parar a expansão do islão e que “a cultura prevalecente na Suíça, baseada no cristianismo, não podia aceitar ser substituída por outras culturas” e que a proibição dos minaretes seria uma expressão da preservação da identidade nacional. A GRA transcrevera no seu website o discurso do político em causa sob o título “Cronologia – Racismo Verbal” e, no processo-crime que se seguiu à queixa apresentada pelo político, veio a ser condenada a retirar o texto do seu site e a pagar uma multa de cerca de 6000 euros e as custas judiciais.

Para o Supremo Tribunal Federal suíço, a expressão “racismo verbal” era uma afirmação de facto para além de ser uma afirmação de valor e, sendo o racismo criminalizado na Suíça, a GRA acusara o político da prática de um crime que não existira. Felizmente, o TEDH, onde a GRA se foi queixar, veio esclarecer que a expressão em causa, sendo uma opinião ou uma afirmação valorativa, não tinha que ser verdadeira nem falsa, bastando-lhe, para ser legítima, ter uma suficiente fundamentação factual. E o próprio Comité das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação Racial considerara a iniciativa da proibição dos minaretes como discriminatória, xenófoba e racista. Por outro lado, no entender do TEDH, a GRA nunca afirmara ou sugerira que o político em causa praticara qualquer crime. E, assim, o TEDH, no passado dia 9 de Janeiro, condenou a Suíça, por violação da liberdade de expressão da GRA, a indemnizar esta ONG em 35.000 euros.

Curiosamente, no mesmo dia 9 de Janeiro, o Supremo Tribunal francês (a Cour de Cassation) anulou a condenação da ex-deputada e ministra do Partido Cristão Democrata Christine Boutin que, entre outras coisas, tinha afirmado na revista Charles, em Abril de 2014, que “a homossexualidade é uma abominação. Mas não a pessoa. O pecado nunca é aceitável mas o pecador é sempre perdoado. [...] Tenho amigos homossexuais [...]. Eu também sou uma pecadora, mas nunca me verão fazer a apologia do pecado”.

Levada a tribunal por “incitamento público ao ódio ou à violência”, Christine Boutin foi condenada, pela afirmação de que a homossexualidade era uma abominação, na primeira instância a pagar uma multa de 5000 euros e uma indemnização de 2000 euros, decisão que fora confirmada pelo tribunal de recurso mas que a Cour de Cassation veio a revogar.

Para este Supremo Tribunal, a referida expressão, embora “ultrajante”, não continha, nem de forma implícita, “um apelo ou uma exortação ao ódio ou à violência em relação aos homossexuais” e absolveu Christine Boutin, que se regozijou no Twitter por ver confirmado que “as liberdades de expressão e de consciência continuam a existir em França”. Do lado da Inter-LGBT, uma das associações que tinham apresentado a queixa, a decisão da Cour de Cassation era incompreensível já que “era claro que existia um incitamento ao ódio”, até porque as declarações de Christine Boutin se inscreviam numa já longa série de declarações extremistas em relação às pessoas homossexuais.

Moral da crónica: o dia 9 de Janeiro de 2018 ficou marcado por duas decisões judiciais com que nos devemos regozijar. Ambas nos respeitam como pessoas livres.

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