Elegia por Hugo Soares

Portugal representa um caso extremo de desvirtuação do parlamentarismo pelo partidarismo — e mesmo isto é uma caracterização generosa da realidade.

 

Os leitores saberão que não partilho a maioria das ideias de Hugo Soares, ex-líder parlamentar do PSD, e imaginam certamente que não gosto do seu estilo. Mas sabem quem partilhava e gostava? Os deputados do PSD. Pelo menos até há poucos dias. E era o direito deles, que eu não sou deputado do PSD.

Mas sabem quem também não é deputado do PSD? Rui Rio, que acabou de ser escolhido líder do partido em eleições diretas. Parece agora que tanto os deputados do PSD como a nova liderança acham natural que a mudança de um líder partidário implique a mudança automática de um líder parlamentar. E aí já temos de novo o direito e até o dever — todos nós que não somos deputados do PSD — de opinar. Não sobre a escolha do líder parlamentar, mas sobre as razões da sua cessação de funções.

Ora, essas razões radicam numa das mais infelizes confusões da cultura política que foi rapidamente imposta em Portugal pelos partidos, apesar da boa vontade dos constituintes.

Os constituintes sonharam, como todos nós, com um regime parlamentar. Consagraram na lei fundamental o exercício do mandato de deputado em plena liberdade e até na votação da própria Constituição fizeram exercício da liberdade parlamentar que preconizavam. Como conta Jorge Miranda nas suas memórias, é aos constituintes do então PPD que devemos — curiosa e ironicamente — o facto de terem contrariado a vontade da liderança partidária para aprovarem na Assembleia da República a Constituição.

Logo que puderam, porém, os partidos deram a volta ao tabuleiro. Usando o seu poder praticamente exclusivo de acesso aos lugares de representação e a sua prática monopolista na constituição das listas de candidatos, começaram a apertar o torniquete bem cedo, ainda nos anos 80, quando se entenderam para cortar cerce as possibilidades de constituição de grupos rebeldes na Assembleia da República. Mais recentemente, um caso como o de Luísa Mesquita, ex-deputada comunista por Santarém que o seu partido quis e pôde ostracizar, prova que os deputados incómodos não têm tempo de palavra e que se passarem a independentes é como se desaparecessem. E isso sem falar na rigorosa aplicação da disciplina de voto, com multas e sanções, em total desrespeito pelo que diz a Constituição. (E, já agora, lembrando só de passagem que a Assembleia da República ainda não se dignou vir a público explicar como acha defensável que haja resoluções e projetos de lei a serem chumbados com uma maioria de votos a favor ou aprovados com uma maioria de votos contra porque, como expliquei em crónicas anteriores, a mesa conta os votos dos deputados ausentes como se devessem ser automaticamente creditados aos grupos parlamentares de que fazem parte).

Estamos tão habituados a isto que se corre o risco de achar que é tudo normal. Não é. Portugal representa um caso extremo de desvirtuação do parlamentarismo pelo partidarismo — e mesmo isto é uma caracterização generosa da realidade. Na verdade, em Portugal os deputados e deputadas — que deveriam ser os mandatários essenciais da representação democrática — estão ao dispor do grupo parlamentar, quando deveria ser ao contrário. O grupo parlamentar, por sua vez, está à disposição do partido. E o partido está à disposição do líder.

Por isso os deputados do PSD esperaram meses para saber que opinião tinham sobre os mais variados temas legislativos. Porque toda a gente achou normal que quem deveria ter opinião sobre matéria legislativa em deliberação na AR era um de dois militantes do PSD que nem sequer candidatos a deputados foram: Santana Lopes ou Rui Rio. E agora toda a gente acha normal que o líder que os deputados acharam por bem escolher há poucos meses, em vez de ter agora de fazer uma natural coordenação com a nova liderança partidária, tenha sido por ela substituído.

Como os leitores imaginam, partilho tão poucas ideias com Hugo Soares que não tenho grandes dúvidas que entre as ideias que não partilhamos estão as que eu defendi nesta crónica. Pelos vistos, nem ele nem os outros deputados acham esquisito este estado de coisas. É sinal de que sabem bem quem foi o antigo patrão que os escolheu nas eleições anteriores, e quem é o novo patrão que pode voltar a escolhê-los nas próximas eleições. É para aí que as suas lealdades estão voltadas.

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