Todo o luxo ou uma irónica provocação

Com um milhão de exemplares vendidos nos EUA, o segundo romance de Amor Towles chega a Portugal com a recomendação de Obama e o rótulo de grande entretenimento. O autor diz que não é só isso. Um Gentleman em Moscovo tem as marcas da grande literatura, diz ele.

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É um nome a conquistar cotação entre as elites americanas e tanto aparece nas páginas de literatura dos grandes jornais como nas de decoração ou imobiliário, graças à sua mais recente casa em Gramercy Park, Nova Iorque

Amor Townsend está farto da observação. “O meu nome é sempre tema quando falo com espanhóis, italianos, portugueses e mesmo franceses”. Isto porque pelo menos lhe perguntam como se pronuncia em inglês. “É Aimer”, diz; “por favor, chame-me Aimer”, e repete um som onde a segunda vogal quase desaparece e a tónica concentra-se no A inicial. O escritor surge no ecrã sem a pose do costume. Não traz gravata, nem laço, nem lenço ao pescoço. O blazer e os mini-óculos com que usualmente se deixa fotografar desapareceram. Parece mais descontraído na camisa e pullover azuis. O nova-iorquino bem-sucedido no mundo financeiro que decidiu ser apenas escritor não aparece nesta conversa com a pose quase aristocrata de outras entrevistas, uma imagem que cola com a literatura que pratica e que é apelidado de gourmet, entretenimento, de uma elegância de palacete, a piscar o olho a Scott Fitzgerald e com um pé na Europa de oitocentos início do século XX.

Desconhecido em Portugal, é um nome a conquistar cotação entre as elites americanas e tanto aparece nas páginas de literatura dos grandes jornais como nas de decoração ou imobiliário graças à sua mais recente casa em Gramercy Park, em Nova Iorque. Esqueçam-se os rótulos por agora. Ele é um escritor à sua secretária com uma enorme estante de livros, envidraçada por detrás a contar como lhe aconteceu a escrita e um sucesso que, ao primeiro livro, foi traduzido para 15 línguas. No ano passado lançou o segundo, vendeu um milhão de exemplares nos Estados Unidos e dobrou as traduções: 30.

“Os meus amigos de infância e de juventude ficaram surpreendidos quando fui parar ao mundo do investimento financeiro. Tinham presumido que eu iria passar a vida a escrever. Mas, entretanto, cheguei a Nova Iorque e juntei-me a um amigo que tinha começado uma firma de investimento e trabalhámos juntos durante 20 anos. Essa firma continua a existir, tem cem empregados, está com saúde. Ao longo desses 20 anos, nos primeiros dez não escrevi ficção porque estávamos a construir a companhia, mas assim que as coisas ganharam uma certa dimensão, recomecei e um dia fui falar com o meu sócio e disse-lhe que adorava o meu emprego, que era fantástico, mas aquele era o sonho dele. Era tempo de eu ir atrás do meu sonho.”

Aconteceu em 2011, quando publicou Rules of Civility. A protagonista é uma rapariga que vive na Manhattan de finais dos anos 30, ambiente marcado pelo jazz e pela ambição de subir na escala social e económica. Amor Towles escreveu o livro quando ainda tinha o emprego. Foi um bestseller. Na Primavera de 2017 saía Um Gentleman em Moscovo. Nele, um conde é condenado a prisão domiciliária depois da revolução bolchevique. O motivo? Um poema de interpretação dúbia que escrevera anos antes e a sua postura em tribunal vista como desafiadora dos princípios revolucionários. Como vivia num hotel de luxo no centro de Moscovo, o Conde (aparece sempre assim, com letra maiúscula, porque era assim que o tratavam no hotel) deveria permanecer no edifício. Trocava apenas de aposentos. Em vez da grande suite com vista para a enorme praça, teria direito a um pequeno quarto no sótão. No tribunal disseram-lhe ainda que dali para a frente, e por tempo indeterminado, a sua vida decorreria sem incidentes se cumprisse uma única regra: não sair do hotel. “... se puser o pé fora do Metropol, será abatido.” É esta a frase determinante para a acção de Um Gentlemen em Moscovo, o segundo romance de Amor Towles que acaba de sair em Portugal na D. Quixote. 

O conde chama-se Aleksander Rostov e, garante o escritor, não é baseado em ninguém. “É completamente ficcional. Não conheço nenhum aristocrata que tivesse sido condenado a prisão domiciliária.” Rostov é o protagonista de um romance que se passa dentro de um edifício quando o exterior vive momentos conturbados. O Conde vai sabendo das mudanças não apenas pela decadência do hotel, mas também pela mudança drástica dos seus hóspedes e visitantes. São eles a dar a Towles motivo para pôr em pratica o que já tinha demostrado dominar no romance anterior: os hábitos sociais, gastronómicos, de etiqueta e gosto artístico das elites. 

Como nasceu então Rostov? “Apesar de não conhecer nenhuma pessoa com aquelas características, o facto é que a condenação a prisão domiciliária era comum na Rússia ao longo de centenas de anos. Existiu no tempo dos czares, no período soviético, há versões disso agora. Por outro lado, muitos americano não têm noção de que uma parte importante da nobreza, da aristocracia, permaneceu na Rússia depois da revolução e continuou a viver a sua vida, correndo riscos ou de um modo muito constrangido, mas tinha emprego, famílias.”

Sabendo isso e querendo que a sua história se passasse na Rússia, focou-se no indivíduo, inventando--o, como já inventara a jovem e ambiciosa mulher da Manhattan dos anos 30 em Rules of Civility. No romance anterior a narrativa é na primeira pessoa na perspectiva de uma mulher de 25 anos de origem popular. No segundo romance o Conde é narrado na terceira pessoa. “Em Um Gentleman em Moscovo 90 por cento da narrativa é extensão da personalidade do Conde”, refere, sublinhando a diferença “enorme” que foi estar num e noutro registo. “Isso faz parte da atracção da escrita. Este homem e a mulher anterior são opostos; estão na fronteira um do outro; uma jovem mulher, operária, e um homem a perder estatuto social e económico. Quando se tem uma história diferente, tem-se uma perspectiva diferente e cada aspecto do processo criativo tem de mudar. O tom terá de ser diferente, as estrutura das frases, a escolha das palavras, o ritmo, os detalhes de observações, tudo é enformado pela tal personalidade. A personagem principal de Rules af Civility é esperta e razoavelmente bem formada, mas nunca teve o tipo de ponto de vista privilegiado do Conde.”

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Um admirados dos russos, do realismo mágico, de Fitzgerald e Hemingway, Henry James e Wharton, de Whitman e Melville, de Conrad e William Faulkner, e do noir americano

Towles, de 53 anos, cabelos ondulados grisalhos, fala num tom pausado, olha em frente sem hesitações. Está habituado a que o confrontem com a sua escrita que resultou num imediato sucesso. Ele não estranha. “Escrevo ficção desde criança. Escrevia no liceu, na universidade... Ao longo de uns 35 anos andei sempre à volta com ideias que achava que podiam dar boas histórias. Nalguns casos cheguei a escrever 30 ou 40 páginas preenchidas com notas. Até ter uma noção da história. O que daria, onde se situaria, quem seriam as pessoas que a povoariam, geralmente”, e sempre em temas em que se sente à vontade ou lhe interessam. Por isso refere que não fez nem faz pesquisa. “Desde miúdo que era fã da América dos anos 20 e 30. Li os livros, vi os filmes, estudei a arte, ouvi a música ao longo de 30 anos e mantive o fascínio. Por isso tive a ideia de escrever sobre uma jovem em 1938. Pareceu-me um lugar muito natural para construir a história porque adoro o cenário e posso criar tudo o que me interessa nessa área. O mesmo acontece em Um Gentleman em Moscovo. Interessei-me pela literatura russa em adolescente, começando com os grandes escritores russos do século XIX, Tolstoi, Dostoievski, Turgeniev, Tchekhov, Gogol; mas com o tempo interessei-me também pela avant —garde russa durante a I Guerra Mundial e, no período soviético e mais uma vez ao longo de 20 anos, fiz uma imersão na história e cultura russas”, conta, centrando-se agora no momento em que a história lhe surgiu. “Estava num hotel em Genebra e achei que seria interessante escrever um livro acerca de alguém fechado num hotel.

Tomou notas, sabia que queria que a história se passasse na Rússia, mais uma vez devido a esse grande interesse e familiaridade com a arte russa. “Não teria escolhido essa história se já não tivesse um enorme interesse nesse tempo e nesse lugar”, confessa. 

Havia, no entanto, um grande desafio: equilibrar essa espécie de clausura com os acontecimentos sociais e políticos do mundo exterior. Para isso criou uma espécie de voz que se faz sentir a espaços e dá a contextualização. “Como pegar numa narrativa que era muito mais sobre a personalidade deste Conde num ambiente luxuoso, uma pessoa intrinsecamente optimista, simpática, e sendo fiel ao seu tom e à sua experiência fazer alguma justiça ao tumulto que foi o período soviético? Era a pergunta que ecoava. Ele, perante a II Guerra Mundial ou as purgas ou as carências de todo o tipo. Se quisesse contar a história da falta de bens essenciais na Rússia, não o poderia fazer através de uma personalidade como a do Conde. O meu objectivo não era fazer uma nova versão do Gulag porque o Conde não era a pessoa certa para contar essa história. A minha função foi contar a história do Conde e ver como eu poderia combinar as duas coisas de forma a que isso funcionasse com a esfera da acção.” 

Towles revela então essa espécie de pessoa invisível que o salvou. Se 90 por cento do livro é narrado numa terceira pessoa fiel à perspectiva do Conde, o resto é contado por alguém diferente. “Essa pessoa no início surge nas notas de rodapé e depois começa a aparecer na introdução dos anos mais importantes, como 1930, 38, 46, onde nos diz o que se está a passar”, precisa. É alguém que está para lá das paredes do hotel e o tom é muito diferente do tom do Conde, menos alheado, mais claro. “Embora não saibamos quem ele é, temos a percepção de que é muito mais cínico do que o Conde, tem uma experiência muito mais directa com as alterações do período soviético.” Com essa voz o leitor vai sabendo de outras personagens, conhece Nina, que acaba por seguir o marido e ir para a Sibéria, ou Michka, que está a voltar de um campo de prisioneiros em 1946.” 

A invisibilidade desta voz traz ao livro o tal equilíbrio que Towles pretendia em contraste com o alheamento e a sumptuosidade, cada vez mais falsas, de uma vida que se está a desfazer como um tecido velho.

“No primeiro esboço do livro, a pessoa que escrevia as notas de rodapé era uma personagem que aparecia no livro pela página 350. O Conde estava no bar do hotel e a voz das notas apresentava-se na primeira pessoa. Ao rever esse esboço senti, em conjunto com o meu editor e outro amigo, que essa personagem estava a desviar a história. A minha decisão foi removê-la, matá-la, em parte por que me dei conta de que não precisava dela. A voz das notas de rodapé seria suficientemente forte.” 

Como o livro anterior, este também demorou três anos e meio a ser escrito: ano e meio para o primeiro esboço, dois para as revisões. e a certeza de que tinha tomado a opção certa. Ser escritor. “A minha decisão de me dedicar a tempo inteiro à escrita não foi assim tão arriscada. Quando saí, tinha poupanças, um bestseller e um contrato pago para o livro seguinte. Por isso não se pode nem sugerir que tenha existido qualquer espécie de coragem na minha decisão. Escrevi esses dois livros sem pensar no mundo fora de mim. Escrevi-os para mim, por mim. Essa foi uma grande vantagem”, salienta este admirador dos russos, do realismo mágico, de Fitzgerald e Hemingway, Henry James e Wharton, de Whitman e Melville, de Joseph Conrad e William Faulkner, e do noir americano, e que há 14 anos tem uma espécie de clube de leitura. “Somos quatro amigos, todos escritores publicados. Lemos um romance por mês. No ano passado lemos dez romances de Philip Roth e este ano estamos a ler os livros de Toni Morrison. Depois encontramo-nos e ao longo de cinco horas discutimos esse livro que lemos. Todos somos escritores publicados.”

Amor Towles conta tudo isto como para justificar um longo percurso e conhecimento e torcer o nariz a muitos críticos que descrevem este romance como um livro para entreter. “Concordo ligeiramente”, afirma. Porquê ligeiramente? “Os dois romances são enganadoramente de entretenimento. Dickens também é assim. Como Calvino, algumas coisas de Tolstoi, e de Jane Austen. Não estou a dizer que sou tão bom como eles, mas os livros são escritos de forma a que o leitor se pode movimentar sentindo-se, a um nível, envolvido e entretido. Mas quanto mais se aplica e deixa os seus pensamentos e considerações fluírem, mais o livro lhe pode dar. Há alguns livros de entretenimento que não se querem ler uma segunda vez e se puserem dez pessoas numa sala não há muito a dizer sobre eles. Não creio que isso seja verdade em relação aos meus livros.”

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