O outro lado da Revolução (II)

A revolução é sobretudo fruto de condições de urgência e crescentes descontentamentos colectivos.

Se a atenção dedicada à Revolução Russa por ocasião do seu primeiro centenário foi uma oportunidade para a reinterpretação desse legado, o mesmo poderá vir a ocorrer este ano, a propósito do cinquentenário do Maio de 68 ou até do próximo aniversario do 25 de Abril de 1974, temas em que, evidentemente, a ideia de revolução pode, na sua polissemia, adequar-se a novas análises e reflexões. E, por isso, serão certamente em breve objeto de análise.

Dando sequência a um texto anterior, pretendo agora explorar o próprio conceito de “revolução” e o seu significado ao longo dos tempos. Nos seus primórdios mais longínquos, a noção de mutatio rerum (‘mudar as coisas’) abriu caminho ao pensamento lógico sobre a mudança social e o seu ritmo. Nos tempos do império romano e de guerra civil da pólis grega tornou-se conhecida a noção platónica de transmutação, ou seja, como explicou Hannah Arendt (On Revolution, 1963), a passagem de uma forma de governo a outra. Na sua origem latina, a palavra — revolutìo ónis — significa uma transformação rápida da sociedade ou viragem abrupta no poder político. A mudança política e a violência que lhe é muitas vezes inerente já eram características conhecidas na antiguidade, mas nem uma nem outra eram associadas ao surgimento de algo inteiramente novo. Aristóteles e Platão referiam-se à importância da “motivação económica” como justificação para o derrube de governos ou pelos ricos para instaurar oligarquias ou pelos pobres para instaurar democracias. Já naquela época os letrados sabiam que, por regra, os tiranos acedem ao poder com o apoio da plebe e que a melhor forma de o preservar é prometer aos pobres a igualdades de condições. Mas é só na era moderna que a “questão social” entra verdadeiramente em cena, e é então — quando a pobreza deixa de ser considerada inerente à condição humana — que a clivagem ricos/pobres emerge como principal fonte de injustiça, suscitando a denúncia de setores crescentes da população, em especial aqueles que estavam condenados à miséria.

Mesmo antes do triunfo da Revolução Francesa e da difusão em larga escala das promessas progressistas do Iluminismo, já os desígnios da modernidade europeia vislumbravam sinais emancipatórios de uma hipotética revolução social: primeiro, sob influência do liberalismo, em que às classes trabalhadoras se oferecia a utopia de que se poderiam libertar dos grilhões da pobreza através do empreendedorismo individual, à imagem de um Eldorado oriundo do continente americano. Numa primeira fase da modernidade, a emancipação dos pobres na Europa, curiosamente, encontrou na Revolução Americana o maior exemplo de prosperidade. Exemplo esse que ofereceu aos clássicos da economia europeia (como John Locke e Adam Smith) o argumento para afirmarem a importância do labor e do trabalho duro como via para o enriquecimento individual e já não apenas como sinónimo de exploração. Mas apesar da permeabilidade do exemplo americano nos meios filosóficos do Velho Continente, as novas rebeliões das massas trabalhadoras e os seus movimentos ignoraram essa via.

Ao longo do século XIX surgiriam novas correntes ideológicas e lutas sociais, muitas delas já sob a influência do marxismo e, a partir das primeiras décadas do século XX, animadas também pela vitória dos bolcheviques de 1917. Os protestos operários de Chicago em 1 de maio de 1886 tiveram o efeito de contágio que atravessou o Atlântico com as primeiras lutas operárias da indústria moderna dos EUA, marcadas pela violência. Todavia, como é sabido, o vírus do 1.º de Maio enquanto momento de revolta do trabalho contra o capital propagou-se, não nos EUA mas na velha Europa. Entretanto, os impactos da Revolução Industrial inglesa abriam caminho a um forte movimento operário e sindical, dando expressão política às principais correntes revolucionárias. Com as ideologias da época a digladiarem-se entre si, reforma ou revolução, social-democracia, assistencialismo, anarquismo, socialismo utópico ou comunismo forneceram ao operariado industrial europeu toda uma panóplia de referenciais de mudança radical. Mas, à luz das teorias que a inspiraram, a “Revolução proletária” acabou por acontecer no lugar “errado” enquanto o capitalismo ocidental começava a ceder e a adaptar-se aos clamores populares por justiça social e democracia.

Uma explosão só ocorre quando não existem válvulas de escape. Ou seja, o pluralismo político e a institucionalização do conflito na Europa do pós-guerra permitiram substituir as rebeliões de massas por mudanças reformistas, muito embora se possa concluir que sem o impulso dos movimentos revolucionários os programas sociais-democratas, o keynesianismo e muitas das conquistas civilizacionais que hoje conhecemos, não teriam sido alcançadas. Uma liderança carismática e um bom discurso demagogo podem sempre ser decisivos. Todavia, a revolução é sobretudo fruto de condições de urgência e crescentes descontentamentos coletivos; não principalmente resultado do trabalho organizativo de “revolucionários profissionais” ou de uma qualquer “vanguarda”. Em que condições pode então ocorrer uma revolução? Historiadores e cientistas sociais — como Theda Skocpol (States and Social Revolutions, 1979), entre outros — reportam-se à Revolução como um processo onde se conjugam diversas revoltas populares, incluindo conflitos de interesses envolvendo o Estado, as elites e as classes trabalhadoras, e que tem como resultado uma alteração profunda das estruturas de classe e da sociedade. A revolução só pode triunfar, afirmou Lenine, quando os de baixo não querem e os de cima não podem continuar a viver como dantes. Na definição de Charles Tilly (From Mobilization to Revolution, 1978), há três condições para se poder falar de revoluções: (1) quando existem claras discrepâncias entre o que os governos exigem dos seus cidadãos mais bem organizados e a sua capacidade para fazê-los cumprir; (2) quando os governos impõem exigências que ameaçam as identidades coletivas ou violam direitos associados a essas identidades; e (3) quando o poder da elite dominante visivelmente diminui em relação à força crescente dos seus opositores.

Um conhecido sociólogo francês que se celebrizou pelos muitos estudos sobre movimentos sociais (Alain Touraine) afirmou que o poder transformador de uma revolução nunca se traduziu na substituição das classes dominantes pelas dominadas, antes abriu espaço a uma mudança na estrutura de classes, na qual, não raramente, se transformou antigos revolucionários em novos oligarcas. A acomodação às cadeiras do poder e o deslumbramento perante o novo status tendem a subverter as intenções iniciais (ainda que estas sejam as mais generosas). O próprio Friedrich Engels já alertava em finais do século XIX, a propósito da revolução, para o risco de divórcio entre a teoria e a prática, razão pela qual “os revolucionários descobrem no dia seguinte que a revolução que fizeram não era aquela que deviam ter feito”. Em suma, é a urgência da emancipação que abre caminho à revolução. Ou seja, se é verdade que “as revoluções começam sempre num beco sem saída”, o efeito libertário e emancipatório não está necessariamente do lado de lá do muro, mas no próprio ato de saltar.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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