Da derrota do Daesh ao conflito de potências na Síria

Chegou a altura de parar com o grande jogo no Médio Oriente e negociar a paz e estabilidade na Síria, sob pena de consequências desastrosas para a região e o mundo.

1. O aparecimento do Daesh (Estado Islâmico) na Síria e no Iraque, em 2014, deu às potências regionais e mundiais com interesses no Médio Oriente um motivo para legitimarem, face à opinião pública internacional, a suas intervenções na guerra da Síria, em curso desde 2011, como uma “boa causa”. Na superficialidade, Irão / Hezbollah, Rússia, Turquia, EUA e outros, encontraram no Daesh e no terrorismo internacional um inimigo comum que necessitava de ser derrotado. Todavia, com as sucessivas derrotas militares do Daesh ao longo do último ano — e a sua progressiva perda de terreno nas áreas da Síria (e Iraque) onde estava implantado —, os objectivos díspares das potências intervenientes estão a emergir de forma muito nítida. Face ao estalar da superficial e oportunística convergência de interesses, surgem agora os atritos militares no terreno. Importa lembrar que a guerra na Síria começou como uma rebelião onde múltiplos grupos procuravam derrubar Bashar al-Assad e o seu regime, apoiados externamente pela Arábia Saudita, Qatar e outros Estados sunitas do Médio Oriente, incluindo, a nível mais global, os EUA e outros países ocidentais. Os campos em conflito eram (e são) bem evidentes.

2. Aquilo a que estamos a assistir agora é a uma espécie de reatar das linhas de atrito iniciais do conflito, anteriores ao aparecimento do Daesh como força maior da guerra, mas com algumas diferenças importantes a reter. Ao contrário de que acontecia em 2013 ou 2014, onde poucos antecipavam a permanência de Bashar al-Assad no poder, este encontra-se agora numa posição de (relativa) força. Para além do Irão e do Hezbollah libanês, aliados desde o início de Bashar al-Assad, ambos com uma efectiva e relevante intervenção na guerra desde o seu desencadear em 2011, o grande desequilibrador foi a Rússia, com a sua intervenção militar iniciada em finais de 2015. A actual situação, onde o governo sírio voltou a ter o controlo da maioria do território e das grandes cidades, deve-se fundamentalmente ao impacto militar da intervenção russa, especialmente da sua força aérea. Nesta fase não só a Rússia como todos os restantes intervenientes externos procuram posicionar-se militarmente no terreno para projectar a sua influência política na Síria pós-guerra em situação de força. Mas esta fase está a mostrar-se particularmente perigosa. Levou a um recrudescer da violência e ao emergir das fricções entre os múltiplos intervenientes externos na prossecução dos seus próprios objectivos.

3. Importa ter em mente uma visão mais alargada do conflito. Está em curso um grande jogo no Médio Oriente onde actores regionais e mundiais procuram projectar a sua influência e poder, existindo várias linhas cruzadas e de conflito, aberto ou latente. (Ver “A Síria e o grande jogo no Médio Oriente” in Público, 1/2/2018). Vejamos algumas das principais ocorrências do último mês que mostram onde e como os interesses em jogo dos poderes externos estão a colidir. Primeiro, foi a Turquia a atacar em Afrin as Unidades de Protecção Popular (YPG) — as milícias curdas que combateram o Daesh e são o principal aliado dos EUA no terreno —, para se posicionar contra as ambições curdas de autodeterminação na Síria e no seu próprio território. Depois, nos últimos dias, um avião russo Su-25 foi abatido na região de Idlib pelos jihadistas do Hayat Tahrir al-Sham, próximos da Al-Qaeda (um dos muitos grupos que, de alguma forma, receberão apoios nos bastidores dos Estados sunitas que se opõem ao Irão e pretendem derrubar Bashar al-Assad). Pouco tempo depois, os EUA bombardearam forças do governo sírio e seus aliados no Leste da Síria, provocando significativas baixas, numa região rica em petróleo e gás natural. Estas competiam com as forças curdas e grupos opositores a Bashar al-Assad pela ocupação do terreno deixado livre pelo Daesh em retirada da região de Deir ez-Zor.

4. No meio do caos, dos imensos dramas humanitários e das lutas de poder que marcam a guerra da Síria, este fim-de-semana emergiu mais uma perigosa linha de conflito envolvendo Israel e o Irão / Hezbollah. É verdade que incursões militares esporádicas de Israel dentro do território da Síria têm existido desde o início da guerra, normalmente através de bombardeamentos aéreos de alvos específicos. Mas o que ocorreu nos últimos dias mostra uma escalada na confrontação. Na versão de Israel, um drone iraniano que operava a partir do território da Síria terá entrado no seu território. (O Irão nega essa acusação). Em resposta, Israel atacou uma base militar síria perto de Palmira, tendo as defesas antiaéreas do exército sírio abatido um avião militar israelita. Na subsequente represália foi efectuado um novo ataque aéreo em território da Síria, onde Israel terá atacado forças governamentais e iranianas. A situação é tensa e perigosa. O risco óbvio é o da evolução para uma confrontação militar directa entre Israel, o Irão / Hezbollah e o exército sírio, que arriscaria provocar um conflito alargado, desde logo ao Líbano, colocando em confronto potências regionais e mundiais. Neste contexto, não é de negligenciar o papel dos erros de cálculo de acções militares que a própria situação confusa e tensa no terreno propicia.

5. Com este extraordinariamente complexo puzzle do Médio Oriente, provavelmente só a Rússia tem capacidade para fazer diminuir as tensões que se acumularam nos últimos tempos devido à guerra na Síria. Pela sua intervenção militar decisiva tem hoje uma óbvia influência directa sobre o governo de Basahr al-Assad. Tem também, ainda que de forma mais indirecta, mas certamente relevante, influência sobre o Irão e o seu aliado libanês, o Hezbollah. Ao que tudo indica, dispõe ainda de um entendimento com a Turquia em matéria de esferas de influência na Síria, nas zonas fronteiriças entre os dois Estados, como se viu pela intervenção turca em Afrin feita sem oposição russa. Nesta difícil equação estão ainda os EUA, que podem ter um papel estabilizador ou desestabilizador, algo particularmente imprevisível com Donald Trump. Quanto a Israel, a Rússia criou uma relação pragmática com esse Estado, que não é de hostilidade nem de aliança. Claro que se o conflito entre Israel e o Irão / Hezbollah / Síria se agudizar a Rússia acabará por tomar partido dos seus aliados sírio e iraniano. Mas esse é um cenário extremo que interessa evitar a Vladimir Putin, nesta fase muito mais interessado em encontrar uma solução política para a Síria que traduza os ganhos militares. Ao mesmo tempo, para Israel, uma guerra dessa envergadura poderia ser altamente destrutiva e nada indica que um afastamento de Bashar al-Assad lhe pudesse trazer um regime mais favorável na vizinha Síria. Todos estes riscos mostram que chegou a altura de parar com o grande jogo no Médio Oriente e negociar a paz e estabilidade na Síria, sob pena de consequências desastrosas para a região e o mundo.

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