Arno Schmidt, o som e a fúria

Um feito raro: a revelação em português de um grande escritor alemão, Arno Schmidt.

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Arno Schmidt (1914-1979) nunca havia sido publicado em Portugal DR

A tradução para português de autores de ficção narrativa que não escrevem em língua inglesa tornou-se, nas últimas décadas, dramaticamente residual. A hegemonia é de tal forma asfixiante que até se pode constatar que alguns dos poucos autores não escreventes de inglês (nórdicos, um ou outro italiano, por exemplo) por cá publicados  só terão sido traduzidos depois de testados e caucionados (por assim dizer) pelo mercado editorial e mediático anglo-saxónico.  Aparentemente, portanto, a ficção ou é inglesa (com Booker a preceito, de preferência) ou não existe. Daí que a publicação pela editora Abysmo de Leviatã ou O Melhor dos Mundos seguido de Espelhos Negros seja um feito que exige e merece um sublinhado introdutório especial. Porque o feito é triplo: além de ser alemão, o autor chama-se Arno Schmidt (1914-1979) e nunca havia sido publicado em Portugal.

Schmidt nasceu em Hamburgo, cresceu na Baixa Silésia e em 1937 era guarda-livros numa fábrica têxtil onde conhecerá a sua futura mulher. Em 1940 é chamado a prestar serviço militar (administrativo) na Alsácia e, dois anos depois, na Noruega, onde será capturado, no final da Segunda Guerra Mundial, pelas tropas britânicas. Depois da Guerra, dedicou-se desmedidamente à leitura (vício da infância), à tradução (Poe e Faulkner, nomeadamente) e à (outra) escrita (ficção, ensaio, biografia, etc.). Passou os últimos vinte anos de vida afastado do mundo numa casa rústica em Lüneburg. Lírico e árduo, enciclopédico e experimentalista, intratável e refractário a consensos apaziguadores — leia-se o tratamento dado a Nietzsche (“esse patife de focinho loquaz”) e a Rilke, por exemplo —, um émulo, lá para o final, do Joyce mais radical (o de Finnegans Wake), Arno Schmidt é, certamente, um dos mais desafiadores escritores ‘europeus’ do pós-guerra.

William Gass, outro escritor intratável (e, apesar de estado-unidense, ainda  à espera de ser ‘descoberto’ por algum editor ou publicista português), falecido em Dezembro passado com uns belos 93 anos de idade, dizia em 1977, numa daquelas famosas entrevistas da Paris Review, que escrevia porque odiava. E muito. Os amorosos tempos que vivemos não são particularmente sensíveis às virtudes criativas do ódio, da raiva, da ira, e de outros ‘sentimentos negativos’, sem os quais se não compreenderiam, aliás, algumas das melhores obras literárias (Céline, Bernhard, etc.) do último século (para não irmos mais longe). Felizmente, Schmidt mostra-se menos higiénico (para dizermos o mínimo), e nada do que é humano é alheio à sua obra. E é assim que, mais ou menos a meio da novela Espelhos Negros, vemos o seu narrador e protagonista clamar (na peculiar dicção gráfica do autor): “Estava tão cheio-de-ódio: que peguei na caçadeira, apontei para o céu: o focinho de Leviatã abriu-se sobre dez mil galáxias espirais: até esganava esse cão!” É claro que o cão do caso é o criador da “grande catástrofe”, Aquele que observando a sua Obra logo viu que “Tudo era bom”; mas o nosso protagonista não dedica menor cólera à criatura engendrada pelo Outro: “(E quando eu me for, desaparece também a última mácula da face da terra: será o fim dessa experiência fedorenta chamada ‘ser humano’!)”. Fúria confirmada adiante, ao lembrar-se de “um tenente dos tempos da Segunda Guerra: esse é que eu gostava de ter aqui comigo! Esse canalha leptossómico! Crivava-lhe a barriga a tiros ‘até que as tripas lhe chegassem aos sapatos’ — é de Schiller, caso não reconheça o estilo!”

A novela Espelhos Negros, o mais extenso dos dois textos coligidos no presente volume, foi publicada originalmente em 1951 e pode enquadrar-se no subgénero usualmente classificado como ficção científica ou “antecipação”. A acção, narrada por um solitário e distópico sobrevivente (“Há cinco anos que não vejo uma pessoa, e nunca me ralei com isso;”), decorre entre 1960 e 1962 no “deserto nuclear” europeu herdado de uma “Terceira Guerra Mundial”. O verbo narrar deve ser entendido em sentido abrangente e livre, pois a novela de Schmidt progride pela justaposição de fragmentos graficamente identificados (o Camilo José Cela de Ofício de Trevas 5 terá lido o alemão?) e compostos dos mais díspares materiais: imagens (de uma eficácia lírica e descritiva estonteante, aliás), diálogos, reflexões, problemas matemáticos, etc. No entusiástico prefácio, o tradutor Mário Gomes assinala, com justeza, “o grande paradoxo” desta escrita: “Quanto menos evidente for a metáfora, quanto mais difusa a imagem, maior o potencial de objectividade, maior a nitidez”.

O conto Leviatã, o primeiro texto ficcional publicado por Schmidt, em 1949, alegoriza o pessimismo do autor, através das anotações de um soldado alemão que, em companhia vária e derrotada (“A criança doente florescia perigosamente como uma rosa. Aí: mais lento. Fim. Ora pois. […] E os olhos deles brilhavam como as janelas de um manicómio em chamas.”), tenta escapar ao avanço do Exército Vermelho, num comboio munido de um “arrebenta-travessas” que vai levantando os carris à medida que avança. No fim há uma ponte em ruínas. Como diz o narrador de Espelhos Negros: “[…] no fim hei-de ficar sozinho com o Leviatã (ou até transformar-me eu nele)”.

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