São Valentim, o #MeToo

Parece que a existência de São Valentim se tornou duvidosa nos últimos anos. Não é uma reticência consciente do mercado em torno deste amor comercial, enlatado à pressa para caber em 24 horas. Nem sequer uma dúvida nascida da convicção contrária, feita daquele romantismo bem-pensante e insuportável, o que discursa incessantemente sobre a eternidade amorosa como se a conhecesse de ginjeira. São Valentim não deve mesmo ter existido, até a Igreja o diz. Pelo menos enquanto bispo cristão em Roma que insistia em casar pares apaixonados quando no século III o imperador decretara a proibição dos matrimónios, que eram coisa nefasta para a dedicação plena dos mancebos ao serviço militar.

Conta então a história que o rebelde bispo Valentim foi encarcerado e, nessa condição, é visitado por uma jovem, bela, romântica e cega. Resultado da visita: apaixonados, ela recupera a visão, mas apenas para ver o seu bispo Valentim ser devidamente decapitado em 14 de Fevereiro.

Como guião teria sucesso garantido. E dezassete séculos depois aqui estamos. Boy meets girl com todos os twists de proibições, insurgências e debilidades morais feitas redenções finais, capazes de captar a atenção do espectador mais exigente. E, sendo improvável como verdade, resta a melhor alternativa, que é ser possível como história.

Desapareceu o homem, ficou o mito – ou o #MeToo? Pois se o epidermicamente romântico São Valentim fosse relido à luz dos movimentos mais recentes, o seu destino seria hoje provavelmente o mesmo. Decapitado com urgência, pelo menos em sentido figurado. Um padre, com uma fixação em ser casamenteiro (ou seja, em submeter emoções a sacramentos, esse pecado pós-moderno), que, agindo na mais plena ilegalidade, é preso e ainda abusa da inexperiência de uma jovem com limitações evidentes, não é o melhor cartão de visita para os nossos tempos...

Catherine Deneuve ou Michael Haneke são hoje seres raros, que acham que as pessoas devem ser acusadas e julgadas em tribunais por crimes que tenham cometido, mesmo tratando-se de homens acusados contra mulheres vítimas na indústria do cinema. Não gostam do que chamam de “caça às bruxas”. São finos, portanto.

Mas para quê essa parafernália processual, exótica, cara, dispensável? Esse simulacro – quase que se pode dizer outra vez “burguês” – de justiça?

Todos sabemos que o que parece é. Seja na produção de um filme, seja na actividade de um político, seja no mais privado dos nossos momentos. O que parece é. E pronto, está feito. Até viver, morrer ou nunca ter existido, como alternativas, são detalhes. Afinal a impunidade acabou. Ora veja-se se este celebrado São Valentim não é disso acabado exemplo.

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