E debater impostos europeus sem imposturas?

Deve haver qualquer coisa estranha no tempo frio e enevoado de Bruxelas. Só isso explica que os eurodeputados que votam a favor de impostos europeus lá fora consigam tão rapidamente encontrar forma de se tornarem aguerridamente contra tais impostos quando falam cá para dentro.

O debate europeu em Portugal tem dois modos essenciais: ou não existe ou é feito para baralhar os factos.

Vejamos a troca de farpas políticas sobre a ideia de aumentar os recursos próprios da União Europeia através de impostos europeus sobre a poluição, as plataformas digitais e as transações financeiras internacionais. Os termos da discussão são, ou deveriam ser, muito claros. Toda a gente pede à UE que faça mais: na coesão, na ciência, na segurança, na proteção civil. Para países como Portugal, o dinheiro da União só peca por insuficiente: o investimento público que vai havendo é principalmente sustentado no orçamento comunitário. Querendo toda a gente que a UE faça mais, não poderá fazê-lo com menos. Muito menos após o Brexit. Ora, o dinheiro da UE só pode vir de dois lados: ou das contribuições dos estados-membros, ou de taxas e impostos à escala europeia. No fundo, não é um debate difícil de fazer: basta dizer se se prefere uma fonte, ou outra, ou ambas, e como se espera conseguir maiorias na UE para aprovar a solução da nossa preferência.

O governo português é pela solução “aumentar ambas as fontes”: António Costa declarou ser a favor de um aumento da contribuição dos estados-membros, acompanhada pela introdução dos três impostos mencionados acima. No conteúdo, é uma posição clara. Na forma, peca por não ter sido em primeiro lugar apresentada à Assembleia da República, que é o órgão de soberania que tem competência exclusiva sobre questões de impostos e sistema fiscal. Porém, tendo em conta as reações que já vamos tendo dos partidos portugueses, é bem possível que o governo encontrasse no parlamento uma coligação negativa que na prática deixasse Portugal sem posição sobre este assunto. Vejamos.

O PCP já se declarou contra estes impostos, pela voz do eurodeputado João Ferreira, que opta claramente pelo aumento das contribuições dos estados-membros. Todos os estados-membros? Não. Para o PCP, a quadratura do círculo resolve-se assim: nós devemos receber mais e pagar menos, os contribuintes líquidos devem pagar mais e receber menos. Muito bem. Falta o mais fácil: dizer como é que esta proposta tem apoio maioritário no Conselho Europeu. Onde o PCP também defende, já agora, que cada país tenha direito de veto nestas matérias. Ou seja: se formos minimamente realistas, uma proposta do PCP impossibilita a outra.

Mais extraordinária ainda é a posição do CDS que, pela voz do eurodeputado Nuno Melo, considera a posição portuguesa “surrealista”, porque permitir impostos europeus resultaria em “alienar uma parcela fundamental da nossa soberania”. Uma vez que Nuno Melo é eurodeputado, talvez ainda nunca tenha tido oportunidade de saber como o IVA é já um imposto que resulta de uma harmonização fiscal europeia, ou como a UE já é financiada por receitas fiscais próprias, oriundas por exemplo das taxas aduaneiras. O CDS foi sempre a favor, sem clamar pela soberania perdida. Em 2013, o CDS dizia pela voz de Paulo Núncio que um imposto sobre transações financeiras só poderia avançar à escala europeia. Em 2018, o CDS diz que avançar à escala europeia é que não pode ser.

Mas há melhor: é que o Parlamento Europeu já votou, em 2012, sobre a introdução (em “cooperação reforçada”) de uma taxa sobre as transações financeiras. E como votou então Nuno Melo do CDS? A favor. E como votou João Ferreira do PCP? A favor. Quanto ao PSD (que parece oscilar entre as posições “a ideia é má porque é de Costa” e “a ideia é boa mas não é de Costa”), ao PS (que veremos se não vai titubear de novo como na questão das listas transnacionais) e ao BE (desaparecido nos últimos dias, talvez ocupado a encontrar forma de ser contra qualquer coisa com “europeu” no nome), deixem-me poupar-vos o trabalho: todos votaram a favor de uma taxa europeia sobre as transações financeiras. O que aliás faz todo o sentido: sendo o setor financeiro, como o das plataformas digitais, um dos que mais beneficia com o mercado único, é apenas justo que pague para que a UE consiga fazer alguma redistribuição. E o mesmo vale para a poluição, que não conhece fronteiras.

Deve haver qualquer coisa estranha no tempo frio e enevoado de Bruxelas. Ou então, sei lá, na proximidade a um qualquer microfone de um órgão de comunicação social português. Só isso explica que os eurodeputados que votam a favor de impostos europeus lá fora consigam tão rapidamente encontrar forma de se tornarem aguerridamente contra tais impostos quando falam cá para dentro.

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