Muçulmanas denunciam assédio sexual nas peregrinações a Meca

Depois do #MeToo surge o #MosqueMeToo. São as muçulmanas a dizer o que já sabíamos – que o assédio e o abuso sexuais podem acontecer a mulheres de qualquer religião.

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Peregrinos rezam em torno da Kaaba, em Meca Reuters/AHMAD MASOOD

Nem no lugar mais sagrado do islão as mulheres estão a salvo do assédio sexual. À onda de denúncias surgida do escândalo que envolveu Harvey Weinstein, um dos mais poderosos produtores de Hollywood, junta-se agora a das mulheres em peregrinação a Meca, epicentro simbólico do mundo muçulmano. E isto é o mesmo que dizer que ao movimento #MeToo (#EuTambém) se junta agora o #MosqueMeToo (#MesquitaEuTambém).

O rosto desta denúncia é Sabica Khan, uma paquistanesa que no início deste mês decidiu contar em pormenor como foi assediada junto à Kaaba – uma construção cúbica que guarda uma das relíquias mais importantes do mundo muçulmano, no centro da grande Mesquita de Al-Haram –, falando pela primeira vez de algo que silenciou por temer que não acreditassem nela.

Primeiro, Sabica Khan sentiu que, atrás de si, alguém lhe punha a mão na cintura, depois que pressionava algo duro contra o seu corpo. Estando centenas de milhares de pessoas em redor da Kaaba, demorou ainda algum tempo até perceber que aquele contacto físico que lhe pareceu abusivo era tudo menos fruto do acaso. “Fiquei literalmente petrificada. Não podia fugir e, por isso, parei e virei-me tanto quanto pude para ver o que se estava a passar, mas… não consegui ver quem era”, escreveu na sua conta do Facebook, entretanto encerrada e aqui citada a partir do diário espanhol El País. Apesar de se sentir violada, não disse nada, por temer represálias.

Agora ganhou coragem e denunciou um comportamento que é prática, a avaliar pelas numerosas mulheres muçulmanas que lhe seguiram o exemplo e relataram as suas experiências durante a hajj, a peregrinação de três dias a Meca em que os fiéis fazem um percurso de dezenas de quilómetros para visitar vários lugares sagrados, da Kaaba até Mina e ao monte Arafat, palco do sermão do último profeta do islão, passando no regresso pelo local de oração de Muzdalifah e terminando em Jamarat, onde simbolicamente apedrejam o Diabo.  

Não foi Khan quem criou a hashtag #MosqueMeToo, lançada na rede social Twitter a 6 de Fevereiro, e sim Mona Eltahawy, uma americana de origem egípcia que colabora regularmente com o diário The New York Times e que viu no post da paquistanesa o pretexto para relançar o debate sobre o assédio e o abuso sexuais no mundo muçulmano e a oportunidade de alertar para o quão difícil é falar destes episódios mesmo aos mais próximos, sobretudo por se tratar de algo que acontece durante a grande peregrinação anual.

A própria Mona Eltahawy teve uma experiência semelhante na cidade santa, em 1982, quando tinha apenas 15 anos, e só falou dela três décadas depois, numa entrevista, em 2013, e no livro que escreveu em seguida, Headscarves and Hymens: Why the Middle East Needs a Sexual Revolution (2015).

Nos anos que se seguiram, a activista falou com muitas mulheres que tinham histórias muito parecidas para contar, mas que tinham optado por não o fazer. “É difícil avaliar o alcance do problema porque ao tabu e à vergonha que acompanham os abusos sexuais juntam-se o facto de terem acontecido no lugar mais sagrado do islão, o que aumenta a pressão sobre as mulheres para que guardem silêncio”, disse Mona Eltahawy ao jornal espanhol El País.

Para esta escritora feminista que se define como uma “muçulmana liberal”, chegou a altura de as mulheres quebrarem o silêncio, mesmo que as suas denúncias incomodem a comunidade a que pertencem ou dêem armas à direita racista e islamofóbica.

Dois mil posts em 24 horas

Aisha Sarwari, cronista do jornal britânico The Guardian, concorda com a ensaísta de origem egípcia quando ela defende que o cenário em que estes abusos ocorrem potencia o silêncio. “As mulheres muçulmanas, como as outras, são vítimas de assédio, mas quando isso acontece num contexto religioso exigem-lhes que se calem em nome de uma causa maior. E isso é, ao mesmo tempo, injusto e opressivo”, acrescenta Sarwari.

“O #MosqueMeToo mostra, uma vez mais, que o assédio sexual e o abuso não têm nada a ver com discrição feminina”, escreveu, por seu lado, Faranak Amidi, jornalista da BBC World, na sua conta no Twitter, rede social em que o debate tem estado mais aceso (há já milhares de posts, tendo os primeiros dois mil sido publicados em 24 horas). “Não tem nada a ver com o que uma mulher traz vestido, tem a ver como a maneira como os homens são ensinados a olhar para as mulheres e a pensar sobre elas.”

Por vezes, denunciam algumas das que se solidarizaram com os relatos que têm vindo a surgir, as maiores pressões para que se mantenham caladas ou para que reavaliem a sua interpretação do sucedido partem de outras mulheres. “Eu fui sexualmente agredida, mas não consegui falar até ter 22 anos. E não consegui porque algumas mulheres decidiram que não tinha sido um toque abusivo. Elas decidiram por mim”, escreve Kalyani Kamat.

Na mesma rede social, são também muitos os homens que se pronunciam sobre este novo efeito da onda de choque do caso Weinstein, revelado no Outono de 2017. Uns para acusarem as alegadas vítimas de denegrirem o islão, outros para mostrarem a sua solidariedade, alguns pensando também no caso das suas mães e irmãs.

A hajj, a grande peregrinação a Meca, leva anualmente à cidade dois milhões de fiéis. Em 2017, segundo o site de notícias Huffington Post, 46% eram mulheres.

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