O desporto sobre as águas do Lima e do Atlântico (também) é para mulheres

A participação feminina nos principais desportos náuticos da cidade – remo, canoagem, vela e surf – cresceu nos últimos cinco anos. As condições de treino para as mulheres melhoraram com os quatro novos centros náuticos, inaugurados em 2013, e, com as modalidades incluídas no currículo escolar, os clubes têm hoje mais facilidade em recrutar meninas. Há, porém, obstáculos a superar.

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Delfina Brochado

As águas do Lima suportam o remo de Mafalda Felgueiras, vencedora, aos 36 anos, da Taça de Portugal de 2017 na prova de 500 metros para embarcações com quatro atletas, e a canoa de Rafaela Araújo, uma das pioneiras da sua categoria em Portugal, detentora de dois títulos nacionais — em dupla com a colega Mara Gomes —, treinadora e estudante de Desporto e Lazer, no Instituto Politécnico de Viana do Castelo (IPVC). O esforço de duas gerações de mulheres junta-se numa Viana que, logo após o salto dado em 2013, tem visto o rio e o mar tornarem-se mais femininos.

“Anteriormente, as remadoras eram as irmãs dos remadores ou então as filhas dos antigos remadores. Agora, vê-se muita diversidade e existe um grande acréscimo de atletas femininas. Umas puxam as outras”, compara a advogada Mafalda Felgueiras, remadora que se iniciou na modalidade aos 12 anos, no Náutico Clube de Viana, onde o irmão também competia.

Desde que, aos 32 anos, voltou a remar — cumpriu 11 de interregno, após ter ingressado no curso de Direito, na Universidade de Coimbra, a atleta necessita, face aos tempos de juventude, de se concentrar mais em cada treino pela falta de tempo. Tem de ser também a referência numa embarcação colectiva, quer a coordenar o ritmo, quer a “motivar e a impor disciplina” às colegas. “As miúdas com quem eu remo têm metade da minha idade. Eu vou no barco e elas dizem-me para dizer o que está mal”, esclarece.

A nova geração de remadoras e remadores tem sustentado o crescimento do Viana Remadores do Lima, clube fundado a 21 de Março de 2012 na sequência da fusão entre o Náutico e o ARCO, os dois clubes anteriores. O número de atletas federados subiu de 138 para 227 entre 2014 e 2017, ano marcado pela ascensão dos vianenses à liderança do ranking nacional, indicam dados da Federação Portuguesa de Remo a que o PÚBLICO teve acesso. Nesse período, o número de mulheres aumentou de 29 para 52, perfazendo hoje 23% dos remadores do clube.

Uma das razões para o crescimento é a qualidade das instalações oferecidas pela antiga fábrica da Argaçosa — produzia boinas para o exército — no Parque da Cidade, junto à margem norte do Lima, reitera o director-técnico do clube e antigo atleta, Fernando Moreno. Orgulhoso das 70 embarcações alojadas no hangar, o coordenador dos 12 treinadores do clube nota ainda que algumas dessas “pérolas” foram desenhadas especificamente para se ajustarem ao corpo feminino, o que também ajuda as mulheres a ficar — no passado tinham de competir nos barcos dos homens.

O quarto título nacional consecutivo em juvenis femininos — atletas, no máximo, com 15 anos —, conquistado neste ano, alimenta-lhe a esperança no futuro das mulheres no clube e até numa eventual presença nos Jogos Olímpicos a médio ou longo prazo. “Havendo uma aposta bem organizada no remo feminino, a probabilidade é maior do que no masculino, muito competitivo e com muito mais atletas”, explicou.

Os Jogos de 2020, em Tóquio, vão acolher a estreia da canoa feminina, depois do esforço bem sucedido da WomenCan, organização criada em 1998 no Canadá para promover a igualdade entre homens e mulheres nessa variante da canoagem, conta o presidente do Darque Kayak Clube, Américo Castro, assinalando que a atleta de alto rendimento do clube, Rafaela Araújo, foi uma das “percussoras da canoa em Portugal”.

A aventura na canoagem começou somente aos 16 anos, “um bocadinho à deriva”, confessa Rafaela. Ao fim de um ano, trocou o caiaque pela canoa, variante que surgiu em campeonatos do mundo apenas em 2010. “Quando comecei havia relativamente poucas canoas, três, quatro, e agora já conseguimos competir umas 12 a nível nacional”, disse.

Fundado em 1994, o Darque Kayak Clube saltou das 10 para as 16 atletas inscritas na Federação Portuguesa de Canoagem (FPC) entre 2012 e 2013, quando se mudou para o novo centro, a sul do Lima. O número manteve-se praticamente constante até 2017 — as 19 canoístas perfazem quase 30% de todos os federados do clube (65), segundo a informação da FPC. Rafaela Araújo crê, porém, num amanhã mais feminino por ver cada vez mais raparigas a inscreverem-se e a sentirem-se confortáveis nas mãos das quatro mulheres do corpo técnico, que é composto por mais seis homens.

Américo Castro concorda que a presença feminina entre os técnicos é vantajosa para a captação de raparigas mas reitera que também o são as “condições muito mais atractivas” do novo centro de canoagem, o “grande investimento em materiais” e a aposta junto da faixa etária dos oito aos 14 anos.

Ainda há ventos contrários

Quase no ponto em que o Lima e o Atlântico se tocam, os ventos têm, na última década, equilibrado a presença feminina e a masculina no Clube de Vela de Viana do Castelo, sobretudo até ao escalão juvenil (15 anos), afirma o presidente, António Cruz. Mesmo admitindo que, nos escalões mais velhos, há menos raparigas a competir, o dirigente crê que nos próximos dois ou três anos, com o “aumento constante da base de recrutamento”, vai também haver mais mulheres nesses escalões.

As principais barreiras ao crescimento feminino, esclarece, são o tempo disponível para os treinos que, em cada dia, podem estender-se por seis ou sete horas, provocando “desgastes enormes” em atletas com 15 ou 16 anos, e a logística. Com cerca de 60 velejadores neste momento, o clube é obrigado a ter carrinhas, a posse de carta de atrelados e de embarcação e uma “despesa descomunal” com manutenção e seguros para poder transportar as embarcações para as provas. “Se chegarmos aos 70, 80 velejadores já é um bico de obra”, antevê.

O próprio espaço (ou a falta dele) pode ser uma barreira à participação das mulheres. É o caso do remo, diz a dirigente do Viana Remadores do Lima, Iva Correia. Apesar do Viana Remadores do Lima já ter proposto à Câmara Municipal o aumento do seu centro, a ex-atleta sublinha que o balneário feminino tem um quarto do tamanho do masculino. “O espaço foi construído a pensar no tão pouco espaço que as mulheres vão precisar”, reitera.

Ciente de que o ingresso no ensino superior está igualmente na origem da quebra de mulheres nos escalões mais velhos, a antiga remadora luta ainda pela desmistificação do remo como um desporto de homens, que deixa as mulheres “todas musculadas”, servindo-se dos exemplos que vê no clube. “São campeãs, são miúdas com sucesso escolar, com sucesso no desporto e são, na verdade, muito bonitas e elegantes. Portanto, esta ideia de que são desportos que as deixam musculadas e um pouco masculinas é errada”, defendeu.

Tudo começa nas escolas

Também as ondas rebentam hoje na costa vianense com mais mulheres sobre as pranchas do que há 10 anos, nota João Zamith, presidente do Surf Clube de Viana, emblema fundado em 1989, que abriu a primeira escola da modalidade em Portugal e acolheu a sede da Federação Portuguesa de Surf (FPS) por dois anos. O número de mulheres federadas disparou de sete para um máximo de 25, entre 2012 e 2013, e manteve-se estável desde então, tendo-se fixado, neste ano, em 24 — praticamente um terço dos 74 inscritos na FPS.

O monopólio dos homens, constata o dirigente, esbateu-se com a promoção levada a cabo nos últimos anos e a capacidade das jovens inscritas no clube atraírem, por contágio, outras jovens para o mar. “Criou-se um ambiente favorável a que as mulheres não se sintam marginalizadas”, frisa.

Outra das razões para a afirmação crescente das raparigas, disse, é a inclusão dos desportos náuticos nos currículos do 2.º e do 3.º ciclos das escolas do concelho, graças ao programa Náutica das Escolas, lançado pela câmara em 2013. Com a iniciativa, o clube recebe mais praticantes além dos federados, independentemente das condições “financeiras, físicas e psicológicas”.

“Vem a turma toda. Pode vir o cigano, pode vir o árabe, pode vir toda a gente, o que é óptimo, porque é democrático. Todos têm direito a fazer a actividade”, sublinhou João Zamith, explicando que, depois, cabe ao clube seleccionar os talentos que detecta, quer masculinos, quer femininos.

Responsável pela implementação do programa, com um financiamento anual entre os 300 e os 350 mil euros, o vereador municipal responsável pelo desporto, Vítor Lemos, salienta que a Náutica das Escolas tem contribuído para a “democratização do acesso à água” para a cidade superar “problemas de género”, “problemas económicos” e até “alguns mitos dos desportos náuticos”. Depois de ter arrancado com 395 alunos de 20 turmas no primeiro ano, a Náutica das Escolas envolve, no presente ano lectivo, mais de 1800 alunos de 84 turmas, oriundas dos sete agrupamentos de escolas de Viana do Castelo, indica.

A autarquia, prosseguiu o responsável, deseja ainda, no futuro, monitorizar a participação dos alunos em cada uma das quatro modalidades e perceber como é que a experiência tem motivado os jovens a inscreverem-se nos clubes, em parceria com o Instituto Politécnico de Viana do Castelo.

Os dirigentes dos outros clubes náuticos reconhecem os benefícios gerados pelo projecto: Iva Correia, do remo, vê na Náutica das Escolas uma “forma de alcançar novos atletas”, enquanto António Cruz, da vela, destaca o “passo em frente no desporto escolar” e o interesse suscitado noutros locais, nomeadamente em escolas do distrito de Braga. O presidente do Darque Kayak Clube, Américo Castro, reconhece também o contributo do programa para a subida do número de praticantes mas não para a captação de atletas de competição, até agora “residual”. O dirigente alega que a situação resulta da decisão da Escola EB 2

3 Carteado Mena, a mais próxima do centro de canoagem, em colocar as turmas do 5.º ao 7.º ano somente no remo e no surf. Desprovido de potenciais atletas das zonas mais próximas, o clube tem recebido alunos de escolas mais distantes, mas a falta de transportes para além das aulas impede a captação. “Tem de ser feita de outra maneira”, admitiu.      

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