Sem presença humana, a zona desmilitarizada das Coreias tornou-se um paraíso para a vida selvagem

A guerra, desastres nucleares e fenómenos naturais acabaram por criar inadvertidamente oásis em vários pontos do planeta que rivalizam com as Galápagos em termos de biodiversidade.

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Aves na zona desmilitarizada das Coreias, onde algumas espécies ameaçadas vivem sob a "protecção" dos militares Kim Kyung Hoon/REUTERS

As marcas da Guerra da Coreia da década de 1950 vão desvanecendo no interior da zona desmilitarizada (DMZ, na sigla inglesa), uma “terra de ninguém” criada entre as duas Coreias, que separa dois exércitos que ainda estão tecnicamente em estado guerra e que teve também efeitos inadvertidos para o ambiente: a ausência humana fez com que prosperassem ao longo daquela faixa, que se estende por 250 quilómetros de comprimento e quatro de largura quilómetros, milhares de espécies de animais que, em centenas de casos, estão ameaçadas noutros locais. Como nota a Smithsonian Magazine, num artigo publicado esta segunda-feira, a biodiversidade e os reduzidos níveis de poluição na zona desmilitarizada contrastam de forma dramática com o que se observa imediatamente a Norte, no país comunista, e a Sul, no estado capitalista.

Uma das espécies residentes na fronteira mais fortificada do mundo é o grou-da-manchúria, ave seriamente ameaçada (estima-se que existam menos de 3000 por todo o mundo) que encontrou abrigo na zona desmilitarizada. Convive com os grous-de-pescoço-branco (Grus vipio), cuja existência é considerada vulnerável, com o número de espécimes a diminuir ao longo dos anos. Curiosamente, estas últimas aves são vistas como um símbolo de paz na Península Coreana. Vivem em várias regiões da Ásia, havendo centenas com habitat permanente na zona desmilitarizada. Lá vivem ainda os colhereiros-de-cara-preta (Platalea minor), aves igualmente ameaçadas.

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Uma garça a passear pela zona desmilitarizada Lee Jae Won/REUTERS

Segundo o Ministério do Ambiente da Coreia do Sul, existem mais de 5097 espécies (106 ameaçadas) na faixa desmilitarizada, o que proporciona “um ambiente único onde a vida selvagem pode viver sem a influência de actividades humanas”. Os cientistas estimam que existam ainda várias espécies de peixes e anfíbios (mas também de plantas e fungos, alguns deles raros) na região, como refere o Guardian.

A presença de tantas espécies é explicada não só pela ausência humana mas pela diversidade do território: ao longo dos vários quilómetros raramente pisados pelo homem, a paisagem varia entre zonas montanhosas, bosques verdes e área pantanosas.

A linha divisória que atravessa a Península Coreana, definida pelo paralelo a 38º Norte, foi estabelecida em 1953, na sequência do armistício que pôs termo às hostilidades entre Norte e Sul, mas que não foi seguido da assinatura de qualquer tratado de paz. Está praticamente intacta há 65 anos, proporcionando espaço para que as espécies selvagens floresçam, e apresentando um contraste gritante com a situação registada antes do conflito, quando o crescimento da exploração dos recursos naturais tinha feito disparar a poluição e a deflorestação.

Mas é difícil saber ao certo como se deu a evolução da vida selvagem na faixa, já que o acesso está vedado por uma vasta extensão de arame farpado, cercas electrificadas e minas terrestres, para além de centenas de milhares de militares que transformam a fronteira na mais vigiada do mundo.

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Dois soldados sul-coreanos a patrulhar a zona desmilitarizada, vedada com arame farpado Lee Jae Won/REUTERS

“Sim, a zona desmilitarizada é tensa e pode haver conflitos. Mas esta guerra também nos proporcionou uma fonte de beleza”, disse um guarda sul-coreano ao USA Today, referindo-se aos grous que podem ser avistados na DMZ.

Num artigo científico publicado em 2016 na Nature Communications, com base na análise de dados recolhidos entre 1993 e 2009, quantifica-se o impacto negativo da presença humana para a biodiversidade do planeta. Em 1993, apenas 27% do planeta não tinha qualquer “pegada humana”, e o valor vem diminuindo desde então.

O coordenador desse estudo, Oscar Venter, disse na altura à National Geographic que as zonas desabitadas que albergam centenas de espécies únicas são o verdadeiro “património” que resta ao planeta, e que devem por isso ser preservadas: “São únicas e quando desaparecerem, desaparecem mesmo. Penso que deveríamos olhar para estas zonas do planeta que ainda são selvagens e encontrar formas de as manter assim, livres de humanos”.

A biodiversidade de Chernobyl, das Galápagos ou de Monserrat

Há outros casos onde se observa a relação entre a ausência humana e o crescimento da biodiversidade. Os efeitos da radioactividade na vida animal e vegetal em Chernobyl são inegáveis, mas a retirada de mais de 100 mil residentes humanos deu espaço para que muitas espécies se propagassem livremente. Após o grave acidente nuclear de Chernobyl, em 1986, a região fechada ao público encheu-se de plantas e de animais: cães, veados, lobos, ursos ou mochos. E mesmo com os elevados níveis de radioactividade, um estudo publicado no ano passado regista que o número de animais na região aumentou.

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Um lobo em Chernobyl Vasily Fedosenko/REUTERS

Outro exemplo é o arquipélago das Galápagos, onde 97% da área foi declarada parque natural e apenas cinco das 21 ilhas têm ocupação humana. Totalmente desabitadas até ao século XIX, foram palco das pesquisas de Charles Darwin, que ali se inspirou em 1835 para escrever mais tarde A Origem das Espécies, onde apresentou a sua teoria da evolução. Hoje, as Galápagos são consideradas um dos locais de maior biodiversidade do planeta, contendo muitas espécies animais que não são encontradas em nenhum outro ponto do globo.

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Ilhas Galápagos Nacho Doce/REUTERS

Na pequena ilha de Monserrat, nas Caraíbas, um vulcão despertou em 1995 após um sono de 350 anos, levando à evacuação permanente da zona Sul do território, onde se situava a capital Plymouth. A ilha alberga centenas de espécies endémicas, assim como espécies de plantas e animais em perigo de extinção – são exemplos o sapo galinha-da-montanha (Leptodactylus fallax), a orquídea de Monserrat, as aves Icterus oberi ou ainda o réptil Diploglossus montisserrati.

Mas aqui, tal como em Fukushima ou em Chernobyl, a razão que levou à saída dos humanos teve também efeitos nefastos para a vida selvagem: a erupção vulcânica apagou grande parte do verde que fazia com que a ilha fosse conhecida como a "esmeralda das Caraíbas".

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O vulcão Soufrière Hills, na ilha de Monserrat Str Old/REUTERS
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