Listas transnacionais: a vitória em que poucos acreditaram

As listas transnacionais, porque não têm paralelo em nenhum sistema e, muito menos, nos mais próximos do europeu (que são os federais), seriam sempre um remendo a complicar um tecido institucional já muito pesado e complexo.

1. O Parlamento Europeu tomou uma decisão política de grande alcance constitucional para o médio-prazo: recusou por uma maioria folgada – supostamente inesperada – a adopção das listas transnacionais. Esta vitória, por mais que aqueles que foram claramente derrotados nessa votação (como foi o caso do co-relator Silva Pereira) procurem desvalorizá-la, foi a novidade política da semana parlamentar. Foi uma enorme vitória para o aprofundamento do projecto europeu, para uma representação equilibrada dos Estados e para a democracia parlamentar europeia. Uma coisa é certa e ainda ninguém explicou: porque é que o PS e o seu relator votaram a favor das listas transnacionais, em todos os pontos relevantes? E como articulam essa posição com a alegada posição contrária do seu Governo? Porque é que, tirando o caso de Assis e Ana Gomes, não assumem nem explicam ao público português a sua posição nesta matéria… De que têm medo, afinal?

2. A derrota das listas transnacionais é o grande facto político desta votação, porque, como aqui se explanou ao longo de quatro artigos, o facto de Portugal não perder deputados não traduz em si um especial sucesso. Se o PE, por força do Brexit, vai ter mais 73 lugares livres, como podia Portugal (ou qualquer outro país) perder algum mandato em 2019? Era público, desde o início, que nunca esteve em causa a perda de mandatos na próxima legislatura (2019-2024). De resto, a circunstância de se cumprir agora o princípio da proporcionalidade degressiva não representa nenhum milagre: finalmente havia uma margem de mandatos livres (73, dos quais aliás só se usaram 27) para compensar os países que estavam em défice relativo de representação. A única vitória relevante, neste particular, foi evitar a adopção de uma fórmula matemática permanente de distribuição de lugares que, no futuro (em 2024 ou 2029), poderia levar Portugal a perder mandatos. Esse sim, como muito cedo se alertou, era o risco. Mas até esse feito, resultado de trabalho dentro de cada grupo parlamentar e pelo qual todos os deputados portugueses se bateram, foi alcançado. O preço de se ter conseguido evitar a indesejável fórmula permanente será enfrentar nova batalha na próxima legislatura.

3. Noutra altura, darei nota de como foi possível, a partir de um punhado de deputados de seis países médios, europeístas e até federalistas, fazer crescer um movimento que levasse uma maioria clara do PE a rejeitar as listas transnacionais. Primeiro, convencendo uma larguíssima maioria do Grupo PPE e, depois, persuadindo franjas relevantes de todos os Grupos. Com efeito, e mais por inércia do que por uma reflexão séria ou conhecimento informado, havia a ideia de que as listas transnacionais seriam um expediente pró-europeu ou até federalista. Foi preciso, com argumentos, pedagogia e uma verdadeira campanha interna dentro do Parlamento (a imitar toscamente as que se fazem no Congresso americano), desmontar esse preconceito e essa ideia feita. Ao ler alguma imprensa portuguesa e, em especial, alguns comentadores, choca de sobremaneira que não se tenha a mínima noção de que do ponto de vista da “comparative politics” ou do direito constitucional comparado, as listas transnacionais são um autêntico “Frankenstein constitucional” (como lhe chamei no estimulante debate, oral e escrito, havido com Guy Verhofstadt). Por detrás da oposição às listas transnacionais, não está apenas um argumento de balanço institucional entre países de dimensão muito diversa nem uma razão táctica de combate ao populismo. Estão razões constitucionais e até constituintes de largo alcance, que são, aliás, todas fortemente pró-europeias.

4. Um exemplo de uma defesa das listas, decerto generosa, mas sem exacta noção das consequências associadas, é o de Rui Tavares. A ideia que mais choca é a de que os candidatos da lista transnacional seriam os candidatos a comissários pelo país respectivo. Ou seja, mesmo abstraindo das contradições técnicas da sua proposta que a tornam inexequível, o voto em listas transnacionais não era na prática um voto para o PE: era um voto para a Comissão. Ele não terá percebido, mas por esta via a Comissão passaria a ser directamente eleita, à maneira de um regime presidencial. E a ser assim, com legitimidade directa do voto popular, não faria sentido que fosse responsável perante o Parlamento… Ou será que eles eram directamente eleitos pelo povo, mas depois eram destituíveis pelo Parlamento? Já para não dizer que o colégio de comissários seria uma manta de retalhos de todo o tamanho, pois cada comissário teria sido eleito na sua lista, o que tornaria quase impossível adequar o perfil de cada qual a pastas futuras que lhe fossem distribuídas. E ainda seria preciso explicar como garantir que as 27 nacionalidades conseguiam ser eleitas para o dito colégio. A não ser que, naquele sistema confuso, coexistissem comissários eleitos em lista e outros nomeados por países, cada um com seu estatuto. Dificilmente será concebível uma construção política mais arrevesada e mais longínqua das possibilidades de compreensão dos eleitores. Em matéria constituinte, o voluntarismo não é bom conselheiro…

5. As listas transnacionais, porque não têm paralelo em nenhum sistema e, muito menos, nos mais próximos do europeu (que são os federais), seriam sempre um remendo a complicar um tecido institucional já muito pesado e complexo. A sua recusa não é uma causa isolada nem um capricho; antes se insere numa visão mais ampla do sistema de governo europeu, das suas perspectivas de evolução e da sua capacidade de integração. Perfilho uma visão simples, clara, digerível pelos cidadãos, tão perto quanto possível do desenho federal. Duas câmaras: o Conselho para os Estados, o Parlamento para os povos. Um Governo, a Comissão. E um chefe de Estado colegial, hoje com indirizzo politico à francesa: o Conselho Europeu. No fundo, um sistema praticamente semipresidencial. Eis um tema a que tem de se regressar.

Sim

Campeonato europeu de futsal. Todos os que trabalharam para esta vitória estão de parabéns. Raras vezes é tão evidente a articulação entre o sonho, o plano e a execução.

Não

Costa e os recursos europeus. O Governo arvorou-se em autor de propostas há muito trabalhadas pela Comissão e pelo PE. A caminho da claustrofobia na dimensão europeia?

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