A Justiça não se discute?

A Justiça não é sagrada e intocável. E mal será se a deixarmos passar sem que se levantem vozes críticas.

No momento político pelo qual passamos é dever de cidadania discutir sobre a Justiça, seja pelos conteúdos da sua aplicação, seja pelos métodos, seja pela sua expressão pública.

O facto de os detentores de poder político, nomeadamente o Governo, dizerem repetidamente que não se pronunciam sobre a Justiça, o que é obrigatório e correcto, dada a regra de Estado de Direito e da separação de poderes, leva a que os simples cidadãos e os actores políticos na sua generalidade também achem que não se devem pronunciar sobre essa área. Ora a Justiça não é sagrada e intocável. E mal será se a deixarmos passar sem que se levantem vozes críticas, para além dos especialistas chamados a comentar, com o seu habitual vocabulário técnico. Em democracia tudo se deve discutir e pôr em causa se necessário. Comparo com o que se passa na área da saúde, onde tudo é escrutinado e a Ordem dos Médicos recebe numerosas queixas. A verdade é que a população em geral tem medo da Justiça. Foram dezenas de anos duma ditadura que aplicava a repressão de forma arbitrária e um receio íntimo e abstracto passa de geração em geração. Não vão eles virar-se contra nós... E a verdade é que às vezes se viram. Observando a comunicação social, sobretudo em televisões, há “especialistas” sobre aeroportos, incêndios, legionellas, organizações de solidariedade social, futebol, mas quando se toca em casos de Justiça declaram “sobre isso não me pronuncio”, embora possa haver uma opinião que não seja de juízos técnicos.

Na situação actual relativa à Justiça, ela é lenta, cara e pouco acessível para os mais pobres, mas resulta rápida e eficaz para os considerados notáveis. Para estes também vai ser lenta ou quase infinitamente prolongada. Todavia, fica feita no momento. Empregando a interessante palavra já usada neste jornal, um “passarinho” leva no bico para certos jornais, sempre os mesmos, o conteúdo da investigação do Ministério Público, as acusações e os nomes dos acusados e em cima da hora já o público sôfrego de casos sabe tudo, o resto da comunicação social tem que ir atrás e no dia seguinte o julgamento está feito e a pena estabelecida — é culpado para toda a vida. Fica-nos a legítima curiosidade de nos interrogarmos sobre o que é que o passarinho leva para trás. Doces? Milho? Ramos de oliveira? O que se segue pouco importa. Nestes casos, o juiz de instrução, que está próximo local e mentalmente do Ministério Público, vai formalizar os conteúdos e fica a culpa formada para o julgamento que há-de vir.

A senhora procuradora-geral justificou a dificuldade em investigar as fugas do segredo de justiça (declaração de 02.02.2018), dando o exemplo de um caso recente em que estariam envolvidas no caso e nos seus detalhes e datas cerca de cem pessoas. Ah! E nós a pensarmos que a investigação estava no segredo dos deuses! Só não se percebe é como, com esta osmose, não há fugas de arguidos ou destruição de eventuais provas.

Os actores do Ministério Público e os dirigentes das suas organizações manifestam-se de uma forma claramente política, oralmente e por escrito, sem delicadezas, nem nuances. Os partidos de direita aplaudem e os respectivos comentadores na comunicação social, que são muitos, sustentam as ondas de choque. Por que não podemos então fazer uma análise política dos seus actos? Tem sido felizmente falado o dramático caso de uma mulher que após repetidas queixas ao Ministério Público acabou por ser assassinada pelo marido. Justificou-se o presidente do sindicato através de entrevista à TSF, dizendo que a procuradora em causa tinha 700 processos em cima da mesa. Volto a comparar à Medicina. Tanto para consultas, como para cirurgias, como para urgências, temos uma coisa chamada triagem e muito mal estaríamos se deixássemos ficar em fila de espera queixas altamente suspeitas de infarto do miocárdio para nos ocuparmos de um caso de dores na articulação do cotovelo de longa duração e aspecto benigno. Sugiro a classificação em verde, amarelo, laranja e vermelho e que não se atenda por ordem de chegada ao monte de papéis. O caso da mulher assassinada era vermelho. Outros há verdes e para mandar para trás. Porque isso leva-nos a não deixar de falar do que se passou com o ministro das Finanças.

A direita, no sentido lato, engoliu muito mal o bom desempenho de Mário Centeno e a sua nomeação para o Eurogrupo. No início deste Governo e nas suas primeiras aparições no Parlamento, como faltavam ao ministro ademanes de político profissional, as bancadas da direita, mal ele falava, gozavam e riam-se muito, porque julgavam que era parvo (as imagens existem). Quem o conhecesse do meio académico sabia que era brilhante e que é de uma reconhecida honestidade. Estou entre as pessoas que, apesar de se congratularem com a nomeação deste ministro, não acreditam que do centro do poder europeu nos venham grandes soluções, embora a Grécia já tenha eventualmente beneficiado desta nova composição do Eurogrupo. Também penso que se tem que enfrentar o Ministério das Finanças em termos do actual subfinanciamento da Saúde. Mas tenho que reconhecer que o ministro teve a competência de conciliar boas contas com reposição de salários, que encarou com um sorriso os sabichões europeus e é por mérito e competência que foi nomeado para o Eurogrupo.

Isto que foi uma derrota para a direita não podia ser expressa, porque seria politicamente incorrecto. Era necessário então seguir outra via. Para percebermos aquilo que é de facto desta vez uma conspiração, temos que ir à ponta onde começou o fio que acabaria em inquérito no Parlamento Europeu, e talvez a sua destituição, não fora o passo ter sido muito maior que a perna. Levantado o caso em jornal ou jornais, sempre os mesmos, alarmada a opinião pública, o Ministério Público foi célere a fazer buscas no Ministério das Finanças, vasculhando papéis e computadores, embora sabendo tudo o que se sabe hoje: que o ministro tem assinatura de lugar pago por ele, no estádio, que foi para a tribuna por razões de segurança, que o não pagamento do IMI pelo filho de Vieira dependia da câmara e estava justificado e não do ministério. E também foi célere a informação de Paulo Rangel ao Partido Popular Europeu e a ideia deste partido de levar a questão ao Parlamento Europeu. Jornais de leitura internacional publicaram sobre o caso, não faltando mesmo o New York Times. O caminho estava feito...

Foi desta vez a crítica generalizada, e a atitude firme do primeiro-ministro, que tirou as ideias a quem queria livrar-se de Mário Centeno, dizendo que não o afastaria mesmo que fosse arguido, que acelerou a marcha atrás e o arquivamento super-rápido do processo pelo Ministério Público. E até o PSD passou a ser pela retirada da queixa no Parlamento Europeu.

Ora todo este processo tem actores e responsáveis. Ou será que a luta contra a corrupção está ela própria corrompida? Não podemos deixar de dizer que alguns pensarão: “Ah, se isto fosse no Brasil! Lá é que temos um Estado justiceiro.” Mário Centeno não escaparia. Porque apareceriam logo delatores premiados, sabe-se lá com que prémios. E deste viam-se livres. Passavam logo a José de Magalhães, actor menor mas ex-secretário de Estado do Partido Socialista, arguido porque gastou 400 euros em livros e revistas, numa “mixórdia de temáticas” que, diz o Ministério Público, pouco tinham que ver com a Administração da Justiça de que era responsável. Um a um lá vão eles sendo julgados na comunicação social, porque isto de política vai mal e é necessário ocuparmo-nos de “casos”. E vão projectando um Estado justiceiro, que seria o nosso equivalente dos partidos populistas que há pela Europa fora. 

Sugerir correcção
Ler 4 comentários