É verdade, é verdade. Nas Aldeias de Xisto de Góis o Entrudo anda à solta e tem cara de cortiça

A Corrida do Entrudo faz-se por quatro aldeias do distrito de Coimbra onde se tenta preservar a tradição do património etnográfico da região. As máscaras de cortiça, recuperadas e reinterpretadas, são imagem de marca deste Carnaval que não é feito de grandes massas.

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Ainda não são 10h e um nevoeiro denso encobre a Aldeia da Pena, escondida no fundo da montanha junto aos Penedos de Góis, do concelho com o mesmo nome, no distrito de Coimbra. À entrada, uma dos cerca de 15 habitantes que lá vivem, protegida com roupa suficiente para se resguardar do frio intenso que faz, guarda a aldeia de um visitante que por lá passa uma vez por ano.

Desce-se até ao sopé e entra-se na Pena. Naquele povoado pacato construído em xisto e quartzito, decorado com castanheiros, centenários parece não existir vivalma. A aldeia ainda dorme. Eis que esse visitante surge de cara tapada com cortiça, com a robustez de um corpo alicerçado na união de várias forças que lhe dão vida. Esse corpo divide-se e invade os caminhos estreitos do lugarejo. Ouve-se o som de apitos, testos de panelas, de um bombo, de uma concertina e dos punhos a bater nas portas, pois que chegou o Entrudo. Todos para a rua, que se vão ouvir as coscuvilhices de um ano inteiro em forma de quadra. Quem quiser pôr ordem nas cerca de três dezenas de foliões prontos para tropelias e partidas é bom que fique alerta.

Há os que saem e com sorriso rasgado alinham nas brincadeiras da Corrida do Entrudo das Aldeias de Xisto, que decorre pelo 12º ano consecutivo para que a tradição não se perca e o Carnaval seja assinalado de forma muito próxima de outros tempos, quando a maior parte dos habitantes que ainda resistem nas aldeias por onde a festa passa ainda estavam nos seus verdes anos.

Esta versão do Entrudo foi recuperada e adaptada pela Lousitânea — Liga de Amigos da Serra da Lousã que às 8h30 da manhã do último domingo reuniu na sede da associação, situada em Aigra Nova, cerca de 30 foliões que à imagem do que acontece noutros anos seguiu ?rumo ao encontro dos habitantes de quatro aldeias do concelho ?de Góis. É esta aldeia de xisto o ?epicentro da festa e onde após ?a corrida se retorna para pouco mais de uma centena de pessoas continuarem a folia que dura o ?dia todo.   

A corrida passa por quatro aldeias: Aigra Nova, Pena, Cerdeira, Ponte do Sótão. Na verdade, só apenas as duas primeiras estão na rota das 27 Aldeias de Xisto. Fazem estas duas parte das quatro que estão no concelho de Góis. As outras duas, apesar de não constarem dessa rota da qual também fazem parte Aigra Velha e Comareira, são incluídas na corrida por também serem locais onde o Entrudo sempre foi celebrado. Diz a organização que de ano para ano podem variar as aldeias que participam no evento. 

Duas gerações, ?a mesma tradição

Ainda antes de todos os foliões chegarem a Aigra Nova para caracterização, cerca das 8h, já lá está Natália Domingos, 65 anos, com a sobrinha, Andreia Felizardo, 30 anos. Foram as primeiras a chegar. Chegam já trajadas a rigor com “trapos velhos” que estavam lá por casa. Na mão trazem a máscara de cortiça, imagem de marca do evento. A máscara pesa na cabeça. O dia é longo. Tratarão de a usar quando o momento justificar. Há que preservar o anonimato na altura de dar início às tropelias.

É a sexta vez que Natália participa na corrida. Mora no lugar de Amiosinho, não muito longe, onde o Entrudo era celebrado de forma muito semelhante. “Era um dia em que tudo se podia fazer”, recorda. No mesmo dia, no domingo antes do Carnaval, eram ditas publicamente quadras com as coscuvilhices da aldeia: “Era uma espécie de jornal do sítio”. Tudo isto era feito com a cara tapada para que ninguém fosse identificado. Qualquer coisa servia para esconder o rosto — um pedaço de pano ou “com outra coisa qualquer”. Havia quem o fizesse com um pedaço de cortiça, o que terá dado origem à tradição que de há 12 anos para cá foi recuperada e adaptada. Já lá vamos. Fundamental é que ninguém fosse reconhecido.

Há dois anos veio com a sobrinha, residente na Lousã, que pouco ou nada se interessava pelo Carnaval. “O lado tradicional deste cativou-me”, conta. Quis por isso repetir. Passou a ter um motivo para o celebrar como já faziam os pais e os avós.  

Rita Ribeiro, da Lousitânea, leva esta brincadeira a sério e vai orientado os foliões que, entretanto, vão chegando. Quase todos têm uma ligação à área geográfica onde está inserida a corrida, seja por terem um passado familiar relacionado com a zona ou por terem a dada altura vivido por lá. Muitos deles são repetentes.

Por volta das 9h30, todos preparados, seguem para duas camionetas de 20 lugares cada uma para seguiram para as quatro aldeias. Juntamo-nos e seguimos viagem. A caminho, o ambiente é de festa. A animação vai-se fazendo com ginjinha e outros licores. “É para enganar o frio”, há quem diga. As máscaras ficam pousadas até à chegada ao primeiro local. As instruções são claras. Todos têm de sair já mascarados. A partir daí é cada um por si.

O rasto das tropelias ?dos foliões

Pára-se na Pena. O primeiro destino. Até se chegar ao centro da aldeia, os foliões vão deixando rasto. Mudam-se objectos de sítio, bloqueiam-se caminhos com ramos de árvores, trocam-se vasos de uma casa para a outra e as voltas aos habitantes. Há uma bicicleta de criança encostada a uma das casas erigida em xisto. Serve para aguentar o corpo de um adulto que desce uma ribanceira montado em duas rodas.

Não é possível não ouvir o som da presença dos foliões que se mantêm calados para que não se reconheça a voz. Não precisam de a usar para que se note a presença do Entrudo. Já no centro da aldeia, em cima de um ponto mais elevado, com os habitantes da vila presentes, prepara-se para falar a única pessoa autorizada a fazê-lo.

“É verdade, é verdade”, anuncia-se antes de sair a primeira quadra. “A Dona Camila que vive lá no cimo da Pena acha-se muito esperta, então não é que fez um telheiro onde todos devem passar. Mas que grande lata foi a dela que nem do caminho público se quis desviar”, diz o folião ou foliona responsável por divulgar as coscuvilhices. Em coro ouve-se um sonoro: “É verdade, é verdade”. De forma encadeada vão saindo outras quadras com queixas e novidades dos e sobre os residentes da aldeia. No final delas continua-se a concordar: “É verdade, é verdade”.

Diz-nos Giselda Neves, 71 anos, que quando era mais jovem também já se faziam “marotices” aos outros habitantes. “Íamos de casa em casa e na hora em que se preparava o almoço, com um pau, tirávamos as panelas do fogão e escondíamos”, recorda.   

Esteve 10 anos em França, entre 1969 e 1979. Voltou à Pena já a aldeia tinha menos habitantes. Chegou a ter cerca de 60. “Hoje somos 15”, diz. Cada vez são menos. A corrida do Entrudo considera-a fundamental para que quem lá vive não seja esquecido. Aproveita este dia de festa para se juntar à animação e segue com o resto dos foliões para os próximos pontos de passagem. 

O Entrudo é festa para ?um interior despovoado

É numa das casas à entrada da aldeia da Cerdeira que o grupo de foliões é recebido com a porta aberta. Maria Isabel Simões, 66 anos, veio de propósito de Lisboa, onde reside, para participar na festa. Os pais e o marido nasceram na aldeia. Nunca lá morou, mas tem lá casa que visita regularmente. De resto, a capital foi o destino de muitos filhos destas aldeias, que de lá saíram à procura de uma vida melhor. Poucos regressaram, acabando estas povoações por perder grande parte dos habitantes.

O grupo chegou quando preparava o almoço. Como manda a tradição há que deixar uma marca. Na panela que estava ao lume entrou, sem que visse, uma cebola descascada, ainda inteira.

Na rua, o cenário não é diferente do que já tinha acontecido na Pena. “Quero ver quem vai arrumar isto depois”, diz uma senhora em tom de brincadeira. “É Carnaval, ninguém leva a mal”, responde outra. Na sede da comissão de moradores da Cerdeira fez-se a festa com música e dança. As quadras não foram longas. Ali os cúmplices eram escassos.  

Na última paragem antes do regresso a Aigra Nova, em Ponte do Sótão, reside o maior cúmplice dos foliões, o Senhor Necas, que forneceu material suficiente para ser esta a localidade com mais rimas. Foi no café do lugar que se procedeu à leitura, acompanhada pelas gargalhadas de quem lá estava e do próprio Necas, como é lá conhecido, que as ouvia junto ao balcão. Não escapou e acabou por improvisar mais uma para juntar ao role anterior.

Aos 61 anos, recorda que na sua infância o Entrudo já era celebrado assim, mas por mais gente. Diz-nos que hoje vivem cerca de 300 pessoas na aldeia. É a que tem mais população das que visitamos. A Pena, com 15, e Agra Nova, que não chega a uma dezena, são as que têm menos. Cerdeira já teve mais de 600 habitantes. Metade partiu quando a fábrica de papel que lá funcionava fechou portas. Sublinha que estas aldeias do interior “estão esquecidas”. Serve o Entrudo para “animar quem ficou”. É festa que lhe é querida e continua a ser. “No meu tempo era assim que se celebrava. As máscaras de cortiça já existiam e usávamos, mas não eram tão elaboradas”, conta.

Rita Ribeiro, da Lousitânea, associação que funciona em prol do desenvolvimento das 4 aldeias de Xisto da região, explica que esta é uma tradição que foi recuperada através da oralidade e a partir de algumas imagens antigas. As máscaras de cortiça não eram o único elemento usado para cobrir os rostos dos foliões de Góis.

Há umas duas décadas, um artesão do concelho, José Cerdeira, com 84 anos, passou a manufacturar máscaras de cortiça que agora são usadas na Corrida do Entrudo. “Na minha infância retirávamos os pedaços de cortiça dos sobreiros nas zonas com mais nós. Como esses pedaços já tinham uma forma arredondada usávamos como máscara”, recorda. O artesão recriou as máscaras, elaborando-as. Na sequência da interpretação das máscaras de cortiça levada a cabo por Cerdeira, o grupo que organiza o evento, desde o seu início, usou-as como símbolo da tradição do Entrudo das Aldeias de Xisto: “É uma forma de darmos uma identidade ao nosso Entrudo”, explica Rita.

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