Morreu o arquitecto Raúl Hestnes Ferreira

Nascido em 1931, foi autor dos projectos para o complexo do ISCTE, em Lisboa, ou da Casa da Cultura e da Juventude de Beja. Foi Prémio Valmor em 2002.

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Raúl Hestnes Ferreira dr
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Bem cedo na vida, o contacto com Francisco Keil de Amaral foi decisivo. Percebeu que a sua vocação estava na arquitectura e a ela se dedicaria até ao fim dos seus dias. Foi distinguido com o Prémio Nacional de Arquitectura e Urbanismo em 1982, com o Prémio Eugénio dos Santos e o Prémio Nacional de Arquitectura em 1993 e com o Prémio Valmor em 2002. Raúl Hestnes Ferreira morreu este domingo em Lisboa, aos 86 anos, confirmou ao PÚBLICO o atelier do arquitecto.

Ao longo da vida desenvolveu uma obra “marcada pela procura da universalidade”, num percurso “solitário e de serena independência em que cada obra é um acontecimento imprevisível a promover, antes de mais, a sua própria razão de ser, universal e única”, como se lia na proposta de atribuição do doutoramento Honoris Causa” com que a Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra o agraciou em 2007.

Nascido em 1931, estudou nas escolas de Belas Artes de Lisboa e do Porto, sendo expulso da primeira por “actividades subversivas”. Foi também aluno dos departamentos de arquitectura do Instituto de Tecnologia de Helsínquia, da Universidade de Yale e da Universidade da Pensilvânia. Na juventude colaborou, no Porto, com Arménio Losa e Cassiano Barbosa, tendo sido profundamente marcado pela experiência ao lado de Louis Khan, em Filadélfia, na primeira metade da década de 1960.

Filho do escritor José Gomes Ferreira (1900-1985), Hestnes Ferreira projectou, entre outros edifícios, a Casa da Cultura e da Juventude de Beja, a Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, o novo edifício do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa, a Biblioteca de Marvila, a Escola Secundária de Benfica, baptizada com o nome do escritor José Gomes Ferreira e a Casa de Albarraque, que desenhou para o pai, em Cascais. No contexto do projecto de investigação Ruptura Silenciosa, o arquitecto Manuel Graça Dias filmou A Encomenda, sobre esta casa construída nos anos 1960. Uma obra que Graça Dias achava relevante e que não tinha a mesma popularidade de outras do mesmo período.

“Na Casa de Albarraque agradou-me a qualidade da arquitectura por si própria. É uma casa de férias ou de fim-de-semana muito pequena, funcionando como recolhimento para o poeta José Gomes Ferreira, quando saía de Lisboa. Apesar de pequena é muito surpreendente porque tem imensas surpresas espaciais", explica o arquitecto ao PÚBLICO. "É feita com muito cuidado. O terreno é ligeiramente inclinado e a casa acaba por ter uns degraus e uns desníveis que o acompanham e que vão, no fundo, construindo espaços — que sem portas e paredes — ficam identificados como espaços autónomos."

"Há uma zona de refeições e uma zona de estar mais de Verão, ao pé do terraço, enquanto uma outra zona, ao pé da lareira, mais de Inverno, é mais recolhida. É muito interessante desse ponto de vista. O escritório do José Gomes ferreira é completamente escondido. Há uma série de detalhes e preocupações amorosas em relação à construção do espaço. É uma casa muito surpreendente", acrescenta o arquitecto. 

Para Manuel Graça Dias, Hestnes Ferreira tem "uma obra muito poderosa" que é o Liceu José Gomes Ferreira, a escola secundária que projectou em Benfica. Foi feito em 1974 e é uma peça da qual este arquitecto gosta imenso. "Consegue conciliar uma grande modernidade e um conforto nos espaços e ao mesmo tempo uma imagem, que sendo totalmente diferente, é familiar em relação ao modelo de liceu. Ele inova, mas pisando sempre zonas mais conhecidas de maneira a que as obras não sejam completamente extravagantes ou distanciadas daquilo que o público pudesse esperar."

"Depois tem uma obra de uma vida que é a construção do novo edifício do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa que sobretudo do ponto de vista da organização espacial exterior é muito interessante. Tem uma obra muito longa.", explica Graça Dias. Lembrando também projectos de habitação social "muito interessantes no Alentejo, em Beja". Em Lisboa, o arquitecto realça o bairro das Fonsecas e Calçada criado no âmbito das brigadas SAAL, "um projecto muito ambicioso”, diz.

“O Raúl tem uma obra ímpar e extremamente original, que não parece ter nem antecedentes directos nem consequências directas na arquitectura portuguesa”, defende o arquitecto Alexandre Alves Costa, que conheceu o amigo quando este veio estudar para a Escola de Belas Artes do Porto. “Ele tinha sido expulso da Universidade em Lisboa e, já no Porto, onde nos tornámos muito amigos, foi preso por pertencer à Associação de Estudantes da escola”, conta Alves Costa, que mais tarde viria também a ser colega de docência de Hestnes Ferreira na Universidade de Coimbra. 

“Era um original: chegava a Coimbra fora de horas, sempre na sua 4L – quando deixaram de as produzir, desistiu de ter carro –, ia ter com os alunos ao final da tarde, falava com eles e a seguir ia calmamente jantar com os assistentes”, descreve o arquitecto. “Mas depois voltava e, se fosse preciso, ficava por lá noite fora: a sala dele em Coimbra era conhecida por ‘o farol’ porque a luz ficava acesa toda a noite”.

Recordando a ascendência norueguesa de Raúl Hestnes Ferreira (através da sua mãe, Ingrid Hestnes), Alexandre Alves Costa lembra que o arquitecto trabalhou em vários países nórdicos e que as suas obras iniciais “mostram influências de Alvaar Alto, como a casa de Albarraque, que fez para o pai”. Mas depois, acrescenta, “foi para os Estados Unidos e trabalhou com o arquitecto americano Louis Kahn, que o influenciou muito, num percurso que tem bastantes semelhanças com o do arquitecto Manuel Vicente”.

“O Raúl era uma pessoa muito sólida, tanto no plano pessoal, como enquanto arquitecto, e as suas obras têm uma grande solidez: ele sabia muito de construção, e no desenho era um caso à parte”, diz ainda Alves Costa, que vê nesse peso do desenho uma das características que singulariza o trabalho do amigo. “Não se pode filiar em nenhuma corrente da arquitectura portuguesa, era um estrangeirado a trabalhar em Portugal”. 

A Raúl Hestnes Ferreira se deve a remodelação e valorização do Museu Nacional Frei Manuel do Cenáculo, em Évora. Joaquim Oliveira Caetano, director do Museu de Évora, conta ao PÚBLICO que gostou bastante de trabalhar com o arquitecto neste projecto de valorização e remodelação do museu de Évora. “Até por conversas que iam muito para além da arquitectura”, conta.

"Não foi um processo nada fácil", lembra Joaquim Caetano ao PÚBLICO, “porque havia um grande preciosismo e uma fidelidade imensa aos princípios do projecto que ele tinha feito."

"Para além disso o projecto foi difícil porque houve muitos problemas pelo facto de o edifício se situar numa zona arqueológica o que levantou muitos problemas e também por questões administrativas. Foi um projecto difícil do qual eu guardo, sobretudo, o grande rigor da arquitectura do Hestnes Ferreira”, acrescenta o historiador de arte que nasceu em Beja.

“Hestnes Ferreira tem muitos outros projectos de que gosto imenso e que fui seguindo ao longo da vida até porque sou de Beja, onde passei a adolescência, numa altura em que o arquitecto fez lá uma série de projectos que foram importantes do ponto de vista social e de recuperação de património”, conclui.

Fez igualmente o projecto de renovação do café Martinho da Arcada, em Lisboa. Esteve entre os finalistas a concurso para a Ópera da Bastilha, em Paris. Entre os projectos habitacionais, conta-se o do bairro das Fonsecas e Calçada, no Campo Grande, em Lisboa, criado no âmbito das brigadas SAAL, de que foi membro.

Neto do empresário republicano Alexandre Ferreira e filho do escritor José Gomes Fereira, o arquitecto era pai de quatro filhos, incluindo o actor Pedro Hestnes Ferreira (1962-2011) e a pintora Sílvia Hestnes Ferreira. 

O corpo do arquitecto será velado esta quarta-feira na Igreja da Graça e será cremado na quinta-feira, pelas 12h00, no cemitério do Alto de S. João.

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