Cabem as memórias de um operário dentro de um actor?

“Eu uso Termotebe e o meu pai também” desenterra as memórias dos trabalhadores da indústria têxtil do Vale do Ave. Um revisitar dos locais onde, de alguma forma, a vida “ficou suspensa à volta de algo que já não existe”. Depois de Lisboa, segue para Coimbra e Aveiro, em Março, e para Guimarães, em Abril.

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A peça estreia-se em Coimbra, a 8 e 9 de Março, no Teatro Académico Gil Vicente Miguel Manso
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As fábricas, mesmo as fechadas — principalmente estas —, estão na vida de toda a gente. No Vale do Ave, porta sim porta sim, havia um operário da indústria têxtil, ou uma filha ou um primo dele. Nos anos 1980, o “ritmo das fábricas marcava o ritmo da vida”. Hoje, quando olham pela janela, vêem aquelas casas de máquinas a apodrecer à beira da estrada. Foi com o desenterrar das memórias de quem lá trabalhava que Ricardo Correia construiu a peça de teatro documental Eu Uso Termotebe e o Meu Pai também. Como se torna um actor num “fiel depositário” das memórias de um operário?

A peça desenrola-se numa catadupa de avanços e recuos no tempo, entre Guimarães e Barcelos, sincopados ao som da maquinaria. Zás, trás, pás. Zás, trás, prás. Desenterrando várias décadas e gerações de operários, o texto quer ser uma reflexão sobre o trabalho, a emancipação dos trabalhadores e a sua consciência de classe. É também um desvendar de memórias. “Há fábricas que são fósseis por enterrar. E muitos dos trabalhadores achavam que as suas histórias não interessavam. ‘A vida do operário é igual em todos os lugares. Assim sendo, para quê falar dela?’.”

Foi o ponto de partida do guionista e encenador Ricardo Correia, da companhia de teatro Casa da Esquina. O mesmo que escreveu, encenou e representou em 2015 O Meu País É o Que o Mar não Quer. E voltou com #Exílios 61/74 no ano passado.

O texto reflecte todas essas inseguranças e contradições de homens e mulheres, cuja vida girava em volta da fábrica. Que, de repente, fechou. Nessa altura, as suas histórias que pareciam de facto parecidas, rotineiras — como se a mecanização lhes tivesse passado para os ossos — param. “E de alguma forma a vida ali ficou suspensa à volta de algo que já não existe.” E, assim, Ricardo levanta o pano sobre uma realidade que vê esquecida nas grandes cidades: o operário, “o fim de linha”, a quem ninguém disse que a fábrica ia fechar.

Revisitam-se as greves, as fugas à PIDE e as vitórias sindicais. A subcontratação, os despedimentos e a insolvência. As histórias dos patrões — daqueles “que dizem que as pessoas do salário mínimo são muito genuínas” — e o filho do operário que queria ser patrão. 

O futuro incerto

Ricardo é filho, neto, primo e sobrinho de operários, natural de Barcelos. Viveu de perto as sucessivas crises da indústria desde os anos 80. Depois do director artístico de o teatro D. Maria II, Tiago Rodrigues, lhe ter proposto participar no ciclo Portugal em Vias de Extinção e ter aceite aquela ideia que Ricardo matutava há sete anos, ligou para casa. Ia levar os seus actores da Casa da Esquina a conhecer os pais, antigos operários. Passaram, depois, dez dias a entrevistar antigos trabalhadores. Entraram-lhes casa dentro para que o desconforto fosse dos estranhos, não dos entrevistados. “É um bocadinho como colocar um projector por cima das pessoas e elas perceberem que há alguém que as quer ouvir”, observa.

Dois sindicalistas, dois sociólogos, dois museus, três fábricas em ruína e 569 fotografias depois: um palco. Havia que montar um espectáculo com o material que passaram seis meses a recolher. Em vez de mostrarem a gravação das entrevistas, os actores revivem-nas em palco. E o público acompanha todo o processo. Com o desenrolar da peça, contam-nos que nunca a história é só sobre os operários. “Colocamos em paralelo a vida destes actores, que não têm um vínculo laboral, nem férias e transportam a mesma ansiedade. Porque ouvimos muito aquela intenção de os nossos pais e avós tentarem dar aos filhos uma coisa melhor que a fábrica. ‘Filho meu não vai trabalhar nesta fábrica, que isto é muito duro.’ Mas esse plano, de um outro futuro que nos foi prometido, falhou.”

Estes actores — de uma geração tão precária como a daqueles que interpreta — são “fiéis depositários das suas memórias”. Conscientes do peso que carregaram: o de registar o filme da vida dos outros e de dar um futuro justo a fósseis por enterrar.

Até este domingo, no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, havia um homem que se lembrava do momento em que se tornou operário, uma mulher que se foi esquecendo do que queria ser quando fosse grande, e uma criança que, com 14 anos e a 4.ª classe, obedeceu à mãe viúva, com sete filhos, e foi para a secção de fatos de banho de uma têxtil de Barcelos. Ela, que queria ser trapezista, lá foi.

Em Março, a peça estreia-se em Coimbra (8 e 9, no Teatro Académico Gil Vicente), em Aveiro (23, no Teatro Aveirense) e, em Abril, em Guimarães (20, no Centro Cultural Vila Flor). Vão perguntar em todos os palcos: “Quando uma empresa morre, quantas vidas faltam contar para dizermos que já vimos tudo?”

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