O homem que nos quer vender a lua

É que Elon Musk pode ter chamado ao manequim que pôs no espaço Starman, inspirado numa música de David Bowie. Mas eu receio que a música de Bowie que mais se lhe aplique seja The Man Who Sold the World.

Quando na semana passada foi lançado o foguetão Falcon Heavy, do empresário-inventor Elon Musk, houve quem dissesse que estávamos a olhar para o futuro. Mas há boas razões para ver este acontecimento com os olhos voltados para o passado — um passado que tem agora cerca de quatro séculos.

Acompanhem o meu raciocínio. Estamos habituados a ver a expansão europeia, pelo menos a partir de Portugal e Espanha, mais ou menos como tendo sido uma empresa estatal. Digo “mais ou menos”, porque o estado moderno ainda não existia verdadeiramente no século XV. Mas é verdade que os reinos de Portugal, por um lado, e o de Castela e Aragão, por outro, mantiveram o comando das grandes navegações junto da coroa. E o facto desses monopólios da coroa estarem sujeitos ao reconhecimento pelo Papa — com o Tratado de Tordesilhas — faz com que os primeiros tempos das grandes navegações europeias fossem percursores daquilo a que alguns séculos depois viríamos a chamar direito internacional.

Mas essa foi só uma primeira fase. Cento e poucos anos depois, por volta de 1600, surgiu uma outra forma de expansão. Ao contrário da expansão portuguesa ou espanhola, a expansão holandesa não é tanto percursora do estado moderno, mas da empresa multinacional. Foi na Bolsa de Valores de Amesterdão (e com essa bolsa de valores, ou seja, praticamente em simultâneo) que nasceu em 1602 a Companhia Unida das Índias Orientais, mais conhecida pela sua sigla em neerlandês: a VOC. A “Verenigde Oostindische Compagnie” era uma companhia por ações que tinha por objeto estabelecer feitorias no oceano índico — a partir de Batávia, hoje Jacarta, os barcos da VOC guerrearam com Goa e acabaram por tomar Malaca aos portugueses.

Para contrariar a VOC os portugueses não tinham só a força das armas. Agarravam-se também ao direito de navegação no Atlântico Sul e no Índico que lhes tinha sido reconhecido pelo Papa. Só que os holandeses, além de serem protestantes e não reconhecerem a supremacia papal, estabeleceram o seu domínio direto com base nos factos consumados e numa nova teoria do direito “internacional” fundamentada por um jovem jurista chamado Hugo Grotius (ou Grócio) num livro chamado Mare Liberum, por oposição ao mare clausum, ou fechado, de portugueses e espanhóis.

O que é que isto tem a ver com a exploração espacial? A analogia é esta: a primeira fase da exploração espacial, baseada num duopólio da Guerra Fria entre soviéticos e estado-unidenses, é uma espécie de fase de Tordesilhas. A entrada em cena de outras potências espaciais, como a China, a Índia ou a Agência Espacial Europeia, é um pouco como a entrada da França ou da Inglaterra nas navegações do século XVI — multiplicam-se os atores mas as coisas não mudam na teoria. Mas se companhias como a Tesla de Elon Musk começam a ser atores efetivos no espaço, então é como se estivéssemos a viver um “momento VOC” na exploração espacial. Num momento desses as coisas mudam primeiro na prática para só depois mudar na teoria.

As navegações espaciais são reguladas por um Tratado do Espaço, já velhinho de 50 anos, que é garantido pelas Nações Unidas e por mais de cem países. Não é aí que prevejo grande luta. Mas há outro tratado, o Tratado da Lua, que determina que a propriedade da lua seja exclusiva da comunidade internacional. Infelizmente esse tratado não foi assinado por nenhum país que conte na exploração espacial. Agora que Elon Musk fala abertamente da sua vontade de fazer uma estação espacial lunar — e que Donald Trump, à hora em que fecho esta crónica, parece querer privatizar a parte da Estação Espacial Internacional que pertence aos EUA — o mais aconselhável seria a ONU ir desenterrar esse tratado e apresentá-lo de novo às partes interessadas, se não quer um dia ser tratada por Elon Musk da mesma forma como a VOC tratou o papa e a sua jurisdição há quatrocentos anos.

É que Elon Musk pode ter chamado ao manequim que pôs no espaço Starman, inspirado numa música de David Bowie. Mas eu receio que a música de Bowie que mais se lhe aplique seja The Man Who Sold the World, que se baseava num livro de ficção científica de Robert H. Heinlein chamado O Homem que Vendeu a Lua. As grandes potências que não assinaram o Tratado da Lua abstiveram-se porque queriam talvez ficar com um pedaço do nosso satélite para elas. Foram imprevidentes. Deveriam agora apressar-se a garantir que a lua fica propriedade da humanidade se não querem que o nosso satélite nos seja revendido por uma companhia cotada em bolsa.

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