Pedras são pedras

Para aqueles dois velhos, ela espanhola já alentejana, ele português com muita Espanha vivida e galgada, nada significavam. Para eles, o tempo era o tempo e aquele passado não tinha futuro. Afinal, pedras são pedras e, ali, havia delas por todo o lado.

Chamava-se Teresa e nascera em Espanha, portanto ele imaginou-a Teresa sibilada com “s” feito “z”. Rapidamente percebeu o engano. Como o sotaque era alentejano, sem mácula e sem qualquer vestígio de castelhano, ficou mesmo Teresa (com “s”). Foi ela que lhe disse, apontando o caminho perdido entre a vegetação, que, sim senhor, já tinha ido ver aquilo. Não fazia sentido que, de há uns anos para cá, tanto caminhante turista vindo sabe-se lá de onde falasse daquilo e ela não o conhecesse — assim sendo, há uns tempos lá se metera a caminho.

Era precisamente “aquilo” o que ele queria ver. Um castro do tempo dos celtiberos, portal para os imaginar a eles, para sonhar comerciantes fenícios a subir o rio para lhes revelar mais mundo, para imaginar os romanos que chegariam depois com a sua civilizada globalização. “Aquilo” era o que procurava.

“Eu só vi lá umas pedras, uns curraizitos”, exclamou a Teresa, amparando a mão na anca para que o peso do corpo não caísse sobre o joelho que já não lhe permitia as caminhadas de outrora, nem a que fez para descobrir o que raio andavam os passeantes a procurar na serra lá em cima, nem certamente as do tempo em que o contrabando era o arriscado sustento da família. “Mas olha que há quem goste de ver as pedras”, atalhou o homem dela, enxada ao ombro, o mesmo ombro que, quando ele era novo, aguentava sem dificuldade carregar 40 quilos até bem para lá da fronteira, caminho feito serpenteando entre as árvores, ele em bando com os irmãos de Teresa de forma a camuflar dos olhos da polícia o ilícito legal, mas moralmente inatacável.

Enquanto o seu homem contava as peripécias de outrora, Teresa, agitada, interrompeu-o. Aquilo afligia-a, não lhe entrava na cabeça. “Umas pedras, uns curraizitos”, repetiu então, num sussurro forte o suficiente para reencaminhar a conversa. “Pois, são umas pedritas empilhadas, são”, concordou o seu homem. Estavam factualmente correctos. Pedras. Restos gastos e indefinidos do que ficou de um há muito, muito distante. Marcas do tempo que a humanidade deixou antes de seguir em frente. Para aqueles dois velhos, ela espanhola já alentejana, ele português com muita Espanha vivida e galgada, nada significavam. Para eles, o tempo era o tempo e aquele passado não tinha futuro. Afinal, pedras são pedras e, ali, havia delas por todo o lado. Despediu-se o caminhante e, jovem como os velhos, não subiu para ver o castro.

Muito anos depois, lembrou-se dos velhos enquanto contemplava um céu nocturno. De telemóvel inteligente nas mãos, todo armado em modernaço, apontava-o ao firmamento, tentando ler numa aplicação muito recomendada online os planetas, estrelas e constelações agrupados no tecto celeste. Três aplicações muito recomendadas depois, estava confirmado que a inaptidão tecnológica não lhe permitiria cumprir a operação com sucesso. Largou o telemóvel espertalhão e olhou novamente. Viajou para o tempo em que as pedras e curraizitos da Teresa com “s” eram casa de pessoas muito vivas e invejou-as por, ao contrário de nós, tornados míopes pelas maravilhas eléctricas da civilização, terem podido contemplar um céu cheio e completo, estrela a estrela, noite após noite.

A seu lado, num corpo de mulher, uma barriga crescia com vida dentro. Recordou os velhos e as pedras que eram só pedras. Quando olhou novamente aquele céu que é o dele, o das estrelas possíveis neste presente com futuro, já não invejava os antigos.

Desde lá longe no tempo, no castro, um homem contemplava o céu completo enquanto, a seu lado, uma barriga crescia com vida dentro. Mais abaixo, não muito longe, dois velhos curiosos vinham subindo o monte.

Foto
Jon Nazca/Reuters
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