Palavras, expressões e algumas irritações: abstinência

O “jejum” para os recasados, aconselhado pelo patriarca de Lisboa, fez-nos lembrar o famoso poema de Natália Correia Truca-truca. Que nos perdoem as almas católicas mais sensíveis

“Privação voluntária da satisfação de uma necessidade ou de um desejo, por motivos religiosos ou morais”, escreve o dicionário sobre “abstinência”. Mas o maior entendido na matéria é o cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, que defendeu “o dever de a Igreja propor a vida em continência, isto é, sem relações sexuais, aos recasados cujos anteriores matrimónios não possam ser declarados nulos”.

Enfim, casados não praticantes.

Se os casamentos anteriores forem anulados na secretaria, então, já se pode quebrar o “jejum” e amar-se à vontade. A confissão e a comunhão têm sempre “via verde”.

Nem todos os bispos portugueses se pronunciam no mesmo sentido, caso de D. Jorge Ortiga, de Braga, e de D. Ilídio Leandro, de Viseu, que até fez uma afirmação bonita à publicação Vida Cristã sobre o tema: “O casamento é um sacramento e as relações sexuais são um bem. Por esse princípio não vou.”

Tudo isto nos fez lembrar (e que nos perdoem as almas católicas mais sensíveis) o famoso e divertido poema de Natália Correia Truca-truca. Estava-se em 1982 e discutia-se pela primeira vez na Assembleia da República a interrupção voluntária da gravidez. A dada altura, João Morgado, deputado do CDS, afirmou que “o acto sexual é para fazer filhos”.

Resposta da deputada (a que se seguiu uma interrupção dos trabalhos, por pândega geral): “Já que o coito – diz Morgado – tem como fim cristalino, preciso e imaculado/ fazer menina ou menino;/ e cada vez que o varão sexual petisco manduca,/ temos na procriação prova de que houve truca-truca. // Sendo pai só de um rebento,/ lógica é a conclusão/ de que o viril instrumento só usou – parca ração! – uma vez.// E se a função faz o órgão – diz o ditado –/ consumada essa excepção,/ ficou capado o Morgado.”

Faz falta “comedimento” (sinónimo de “abstinência”) nas imposições da Igreja. O Papa Francisco sabe. 

A rubrica Palavras, expressões e algumas irritações encontra-se publicada no P2, caderno de domingo do PÚBLICO

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