Acabou o pesadelo, começou a realidade

Trump tem um só objectivo: recuperar a supremacia tecnológica que o exército americano manteve durante décadas sem grande esforço, mas que agora se vê confrontada por grandes potências que desafiam abertamente o poder americano.

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1. Por vezes parece mais difícil entender o que se passa nos Estados Unidos de dentro do que de fora. Os acontecimentos explodem por todos os lados, a informação é constante e vertiginosa, os pormenores por vezes difíceis de entender à primeira. Foi assim durante a semana passada em que muita coisa aconteceu até às cinco e meia da manhã de sexta-feira, quando a Câmara dos Representantes finalmente aprovou o aumento da despesa federal em 300 mil milhões de dólares e a suspensão do tecto da dívida (criado em 2011) por dois anos para garantir um acordo entre Democratas e Republicanos, alcançado pelos líderes do Senado de ambos os partidos. Trump assinou-o  pelas sete da manhã, pondo fim a um novo shutdown do governo federal que ninguém queria e que apenas durou meia dúzia de horas. Houve muitos votos contra de ambos os lados da barricada. Os atrasos deveram-se à teimosia de Nancy Pelosi, a líder dos Democratas na Câmara, que queria garantias sólidas sobre o destino dos Dreamers, e a Rand Paul, senador republicano do Kentucky, um libertário que se recusava a aceitar um aumento brutal da despesa federal e, consequentemente, da dívida, patrocinado por um partido teoricamente avesso ao “grande governo” (embora na prática sempre disposto a gastar) e um Presidente a quem pouco interessa o défice,desde que consiga o que quer e que acredita que tudo passa pelo crescimento da economia, graças ao seu monumental choque fiscal.

2. Tudo isto aconteceu numa semana plena de escândalos com origem na Casa Branca, o último dos quais envolvendo pessoal com um cadastro de violência doméstica. Houve uma diferença. Desta vez, funcionou o bipartidarismo, o que pode significar uma nova fase. Os democratas e uma minoria de republicanos para quem a eleição de Trump foi um golpe difícil de aparar, reconheceram implicitamente que o Presidente veio para ficar, que não tenciona mudar de estilo, e que o melhor que há a fazer é adaptarem-se às novas circunstâncias. Entraram no jogo, obrigando os republicanos a pagar um preço elevado por aquilo que Trump queria e muitos deles também: aumentar ainda mais o orçamento da Defesa, já de si gigantesco. O Presidente pretendia que esse aumento resultasse de cortes nos programas sociais.  A liderança dos republicanos no Senado e na Câmara de Representantes sabia que isso seria impossível sem cedências ao outro lado. Trump tem um só objectivo: recuperar a supremacia tecnológica que o exército americano manteve durante décadas sem grande esforço, mas que agora se vê confrontada por grandes potências que desafiam abertamente o poder americano. Novas armas nucleares fazem parte do pacote. Ganharam 80 mil milhões este ano e um pouco mais para o próximo. Os democratas obtiveram em troca mais de 60 mil milhões de dólares renováveis para manter alguns programas sociais de Obama e garantir maior ajuda financeira à recuperação das zonas da Florida e do Texas devastadas pelas tempestades tropicais do Verão passado. Mesmo assim, tiveram de desistir de uma das suas reivindicações mais importantes, aceitando desligar a aprovação do orçamento da garantia de que os Dreamers não serão expulsos, mas passarão a ser cidadãos americanos, que afinal já são. Os comentadores de direita protestam contra esta “loucura” de aumento das despesas federais. Mas, no geral, os republicanos fazem aquilo que Trump quer.

3. Com a passagem do tempo, a ideia de que o Presidente era uma espécie de “acidente” ou de “assombração” da democracia americana, condenada a desaparecer, está a dar lugar a um debate muito mais sério. Trump não nasceu do vazio, mas sim de uma constante deriva dos Republicanos, que já se verificava há muito tempo, que passou pelo Tea Party (basta lembrar que o senador John McCain teve de escolher Sarah Palin para vice quando enfrentou Obama em 2008) e que acabou numa mistura política letal, que inclui os evangélicos de Pence e que abriu espaço à vitória “absolutamente impossível” de Trump. Alguns dos actuais líderes republicanos no Congresso têm a sua quota parte de responsabilidade nesta abertura à radicalização e à pura demagogia. Mitch McConnell, o líder do Senado, reduziu o programa do seu partido a um ponto único: fazer de Obama um Presidente de um só mandato. Perante o segundo, passou a resumi-lo à obstrução total a qualquer das suas politicas. Agora, resta-lhe obedecer ao actual Presidente e pouco mais.

Hoje, apesar dos escândalos, da impreparação gritante, da ameaça de destruição da ordem liberal, da perseguição aos imigrantes, dos insultos aos mexicanos e aos hispânicos em geral, do racismo, do desprezo pelas mulheres, e de uma listas infindável de coisas que nunca se imaginaram como possíveis na Casa Branca, há a percepção de que a sua base não o abandonou nem tenciona fazê-lo. O escândalo mais preocupante, do envolvimento da Rússia na escolha eleitoral com a eventual conivência do Presidente ou dos seus acólitos, transformou-se numa batalha campal que já envolve o próprio FBI como arma de arremesso. É difícil provar que Trump está a obstruir a justiça, o que seria o caminho mais directo para o “impeachement”. Com alguma sorte, Trump veio para ficar até ao final do mandato. É preciso passar a contar com ele, não como um pesadelo, mas como uma realidade.  É esta a mudança em curso.

5. A grande imprensa, eleita por Trump como o “inimigo número um do povo” também precisa de se adaptar, reconhecendo que tem culpas no cartório quando resolveu tratar o candidato como um fait divers que ainda por cima aumentava as audiências. Os debates nas televisões começam a ser menos crispados, embora continuem a ter quase todos os dias matéria polémica vinda direitinha da Casa Branca. Nos últimos dias, debateu-se intensamente o significado da palavra “traidores”, com a qual o Presidente mimoseou os Democratas, porque não bateram palmas quando, no seu discurso do Estado da União, anunciou coisas boas para a América. Não é uma palavra que possa ser utilizada levianamente, num país onde o patriotismo é levado a sério, e muito menos por um Presidente. Muita gente viu neste insulto mais um sinal de que Trump é genuinamente um líder autoritário, apenas limitado pela Constituição e o funcionamento das suas instituições. Mas o que é, talvez, mais notável é que continua a falar para quem o elegeu e que não o abandonou, prometendo defendê-los de uma  globalização económica que os deixou para trás e protegê-los das ameaças ao seu estatuto vindas dos imigrantes e das minorias, enquanto governa para Wall Street e para a grande indústria. O pacote fiscal que aprovou é para eles. A retórica primária e desbragada que fere os ouvidos de uma maioria de americanos continua a cair magnificamente nos os seus eleitores fieis.

6. Sobra a questão fundamental: quem poderá dar um novo alento político aos Democratas? Estão divididos como se viu na votação do orçamento federal. A tentação de virar à esquerda é real. Obama é único e, portanto, impossível de reproduzir. As previsões para as eleições intercalares de Outubro parecem dar-lhes algum alento. Mas falta um visão da América que querem construir, que vá mais longe do que a rejeição de Trump. Não podem limitar-se a falar para as minorias (incluindo a maioria das mulheres)  e a responder de forma parcelar aos problemas que, no fundo, ajudaram a eleger Trump e que não se vão embora com ele. Têm de saber aproveitar os movimentos de revolta contra Trump que ainda não  perderam o vigor.

7. Normalmente, aquilo que acontece nos Estados Unidos acaba por atravessar o Atlântico. Foi assim com a revolução conservadora de Reagan e de Thatcher ou com os Novos Democratas de Clinton e a terceira-via. Parece que continua a ser assim com Trump e o avanço dos populistas e dos nacionalistas na Europa. As razões são semelhantes: os efeitos negativos da globalização; a culpabilização do “outro”, o mau funcionamento das democracias liberais, num momento de grandes transformações à escala global. Basta olhar para o que se está a passar na Alemanha. Em França, Macron destruiu os velhos partidos à direita e à esquerda, ocupou o centro político e definiu as novas regras do jogo. Numa versão menos radical e bastante mais cansada, a  “grande coligação” podia ser a mesma resposta do centro político. Não está a conseguir. Mas todas as alternativas são piores. 

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