Num museu uma mulher nua nunca é só uma mulher nua

Tirou-se uma pintura da parede em Inglaterra e o debate instalou-se por todo o lado. Por que razão há tantas mulheres, sobretudo nuas, nas obras dos museus e tão poucas na lista dos artistas expostos? O PÚBLICO foi perguntar isto e mais a dois historiadores de arte e a uma artista.

Hilas e as Ninfas (1896), de John William Waterhouse, Manchester Art Gallery
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Hilas e as Ninfas (1896), de John William Waterhouse, Manchester Art Gallery D.R.
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Salomé com a Cabeça de São João Baptista (c. 1510), de Lucas Cranach, o Velho, Museu Nacional de Arte Antiga
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Os Amores dos Centauros (c.1635), de Peter Paul Rubens, Museu Gulbenkian
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As célebres naturezas-mortas de Josefa de Óbidos na exposição de Arte Antiga, em 2015

Se pouco ou nada soubermos sobre esta pintura, podemos simplesmente vê-la como uma obra provocadora que expõe o corpo feminino de forma mais ou menos gratuita, fácil. Um corpo que é o de uma mulher que, a avaliar pela legenda que a acompanha, está em teoria numa situação de grande fragilidade – é uma cortesã, dir-se-ia no século XVII quando o retrato foi feito, uma prostituta, diríamos hoje. Mas, se atendermos aos pormenores do tema que expõe, a sua interpretação adensa-se. 

Jacob Adriaensz Backer (1608-1651), o holandês que é o autor desta pintura de 1640 do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), terá tido por modelo a sua amante mas a mulher que nela evoca – a moeda dourada na mão parece não deixar dúvidas de que troca sexo por dinheiro – é Laís de Corinto, uma prostituta da Antiguidade, célebre pela sua beleza e inteligência. 

“Laís de Corinto tinha na sua cama homens ricos, é verdade, mas também filósofos. Vendia muito caros os seus favores e era famosa pelos seus dotes físicos e intelectuais. Era também uma mulher de grande poder”, diz Joaquim Caetano, historiador de arte e conservador de pintura do MNAA. “Só uma cortesã assim podia mandar embora um tirano que saiu da sua terra com os bolsos cheios de dinheiro para dormir com ela. Há até um provérbio da Antiguidade relacionado com este episódio que mostra bem que ela não é uma prostituta vulgar e que é mais ou menos assim: ‘Não é qualquer um que chega a Corinto’.”

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Cortesã (1640), de Jacob Adriaensz Backer, Museu Nacional de Arte Antiga

O que fariam muitos dos que têm vindo a protestar com a forma como as obras de arte dos museus representam a mulher com esta pintura de Backer? Tiravam-na da parede por expor o corpo feminino desta forma ou mantinham-na porque retrata uma mulher forte, livre? E que sentido faz censurar, à luz dos valores que defendemos hoje, obras que são produto de contextos com centenas de anos?

Esta discussão, ao contrário da que parte da invisibilidade das mulheres artistas numa história escrita por homens e nos museus que durante séculos foram por eles dirigidos, esvazia-se rapidamente, defende Joaquim Caetano, com quem o PÚBLICO conversou a propósito da recente polémica que envolveu uma galeria de Manchester. Em causa esteve o facto de o museu inglês ter retirado da parede uma pintura de John William Waterhouse, Hilas e as Ninfas (1896), em que um grupo de jovens mulheres nuas seduzem um homem que está à beira de um lago, em resposta ao movimento #MeToo, criado no rescaldo do escândalo que revelou uma cultura de abuso e violência sexual sobre as mulheres em Hollywood e que depois se alastrou a vários sectores.

Afinal, a decisão de afastar esta obra pré-rafaelita do olhar dos visitantes, tida por uns como da maior justiça por se tratar de uma pintura que “coisifica” a mulher e por outros como uma censura injustificável capaz de abrir um precedente perigoso, fez parte de um projecto de Sonia Boyce, uma autora que está habituada a trabalhar os grandes debates da sociedade contemporânea a partir da arte (Boyce vai expor o resultado do seu trabalho em Março).

Se pensarmos nos que aplaudiram o exílio temporário deste Waterhouse para as reservas (entretanto já regressou à parede), mais irónico ainda é o facto de nesta cena serem as ninfas a cobiçar Hilas pela sua beleza e não o contrário. São elas que, diz a mitologia grega, acabam por arrastar para as águas o homem por quem Hércules se apaixonou. Se há nela um predador, ele é múltiplo e feminino. E a beleza, essa, está nos dois géneros desta história que também tem lá dentro um amor homoerótico.

Para Penelope Curtis, historiadora de arte e directora do Museu Gulbenkian, este projecto de Boyce para Manchester teve o mérito de levar para o debate público uma discussão que é quase sempre feita por especialistas – a que envolve a ainda diminuta presença da arte feita no feminino do discurso dos museus. 

“É fácil usar o argumento de que as colecções são como são e que nelas há muito mais representações de mulheres nuas do que de homens, que nelas há mais homens artistas que mulheres. Isso é verdade e tem uma explicação histórica, mas também é verdade que é possível fazer muito mais quanto às artistas que temos expostas”, defende. 

Quando dirigia a Tate Britain, Curtis teve oportunidade de apostar na obra de Mary Beale (1633-1699), uma das mais bem sucedidas pintoras do barroco inglês. O trabalho de Beale, lembra o museu britânico no seu site, era tão procurado que não lhe era difícil, mesmo na segunda metade do século XVII, sustentar a família com os seus retratos.

“Foi importante introduzir a obra de Mary Beale na colecção da Tate. É importante que os museus em geral se esforcem por integrar o trabalho das mulheres nas suas galerias.” E como é que isso se faz? Procurando bem nas suas reservas, gastando tempo e dinheiro na investigação histórica e dando atenção aos leilões, onde vão aparecendo obras ainda a preços acessíveis. 

Fernanda Fragateiro, uma artista portuguesa que está habituada a trabalhar esta questão da invisibilidade feminina na história e nos museus, garante que “ter consciência da injustiça desta situação, neste momento, já não é suficiente”. Para que as coisas mudem “é necessário que as mulheres participem igualmente na construção da realidade. E para isso deve ser pedido uma responsabilidade social a todos os agentes culturais, no sentido de encontrar equilíbrio e justiça.”

Em 1995, recorda Fragateiro, quando em Lisboa fez uma comunicação a propósito da conferência mundial sobre a mulher organizada pelas Nações Unidas em Pequim, já falava da fraca presença das artistas nos museus portugueses e nas representações oficiais no estrangeiro, uma presença que rondava os 10%. “Quando mencionei o tema, em 1995, estava a referir-me a museus de arte contemporânea públicos e parcerias público-privadas, ou com subsídios públicos. Nem sequer pesquisei parar trás.” De lá para cá, a situação já terá melhorado um pouco. 

 A luta das mulheres artistas pelo direito a terem uma voz num mundo dominado por homens começou nos anos 60, explica, e “lentamente tem-se assistido a uma mudança social que tem trazido cada vez mais mulheres artistas, curadoras, críticas de arte, directoras de museus para o terreno da arte contemporânea”.

No Museu Gulbenkian, que agora tem a seu cargo, Curtis não tem obras de mulheres artistas para descobrir no acervo reunido pelo fundador, mas há muito que pode fazer, defende, na colecção moderna e nos programas de actividades que com ela estão relacionadas. 

“Neste momento, nas exposições temporárias do ciclo conversas [que cruzam as colecções moderna e do fundador] já temos mais mulheres do que homens.” Isto não significa, no entanto, que o museu deixe de olhar para a arte que se faz no masculino, significa apenas que é particularmente sensível à que é feita no feminino. Uma atitude que procura o “equilíbrio” de que falava Fragateiro.

“Quando se nasce mulher nasce-se discriminada”, diz. Começou a sentir os efeitos dessa discriminação quando entrou para a Escola Superior de Belas Artes e quando começou a expor. “Durante muito tempo tive vergonha de dizer que me sentia discriminada por ser mulher porque logo era gozada pelos meus pares artistas. Só acordei para esse facto quando conheci a artista americana Judith Shea numa visita que fez a Lisboa em 1989. Depois de visitarmos vários museus e galerias ela mostrou-se incrédula e perguntou-me se no nosso país não existiam mulheres artistas. Penso que essa realidade se alterou bastante, mas ainda temos muito trabalho pela frente.”

Uma certa distância

Em Portugal, assegura Joaquim Caetano, a forma como a mulher é representada nas colecções públicas não tem levantado grandes discussões. O conservador de pintura recorda, no entanto, a exposição de José Veloso Salgado no Museu do Chiado, no final da década de 1990, cuja capa do catálogo – um Amor e Psyche de 1891, em que, sem surpresa, a figura feminina aprece totalmente nua e a masculina com os genitais tapados – mereceu protestos. “Creio que houve cartas de uma senhora a reclamar com o facto de se ter escolhido para a capa uma pintura com uma mulher nua, muito jovem, dizendo que não valia tudo para levar as pessoas ao museus. Ora, a obra escolhida é absolutamente académica, nenhuma daquelas figuras é sensual… É uma pintura fria, como tantas do mesmo período, com mulheres nuas ou não.”

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Amor e Psyche, de Veloso Salgado

Mas na academia, explica, a questão da a invisibilidade das artistas nos museus é tema discutido há já algum tempo e a tendência é para que seja cada vez mais contrariada. “As universidades estão cheias de professoras e de investigadoras também na história de arte e isso, naturalmente, vai levar a um maior conhecimento e a uma maior presença do universo feminino. O percurso natural é este – da investigação para a sala do museu. A sala do museu não é nem pode ser o ponto de partida.” E quando a investigação começa a produzir efeitos no museu, geralmente eles reflectem-se primeiro nas exposições temporárias e só depois na permanente. Foi assim, aliás, no próprio museu de Arte Antiga, que só começou a ter uma pequena sala dedicada a Josefa de Óbidos (Sevilha, 1630- Óbidos, 1684) depois de ter organizado uma monográfica desta importante artista do barroco português em 2015.

Nos museus com colecções históricas, como o MNAA, é mais fácil explicar a quase ausência de mulheres artistas. Basta lembrar, por exemplo, que até ao século XIX o ensino lhes estava praticamente vedado e que, até então, as que se arriscavam, como a célebre italiana Artemisia Gentileschi (1593-1653) e mesmo Josefa de Óbidos, faziam-no porque eram filhas de pintores. 

“O sistema de ensino baseava-se em entregar os rapazes de dez ou 11 anos a um mestre, que depois durante quatro ou cinco os formava”, explica Caetano. Viviam nas oficinas dos seus professores, dormiam todos juntos em sótãos ou no meio dos cavaletes e, por vezes, eram sujeitos a castigos físicos, contando que não lhes partissem nenhum membro, dizem alguns dos contratos que se conhecem. “Que pai no século XVI poria a sua filha de dez anos num meio exclusivamente masculino se não fosse ele o mestre? A Josefa, que era uma mulher de negócios, com rendas e propriedades, só passou a poder receber pelos trabalhos que lhe encomendavam quando ficou com o estatuto de ‘donzela emancipada’. Até lá pagavam ao pai.” 

A polémica levantada à volta da pintura de Waterhouse do museu de Manchester desvia, defende, a atenção do debate que interessa e que tem a ver com a representatividade da mulher artista. 

Não se pode esperar dos museus que reajam a preocupações e movimentos sociais no imediato, adverte este conservador de pintura. “As colecções não andam ao sabor das flutuações de temas dos jornais, mas as mudanças fazem-se. Hoje a academia trabalha temas que há 50 anos seriam impensáveis – a doença, os pobres, o espaço doméstico da casa comum… Há 50 anos só se estudavam os palácios.”

A directora do Museu Gulbenkian concorda, mas adverte: “Os museus e os seus directores não podem responder logo, mas também não devem ignorar o que se passa à sua volta. Quando respondem, no entanto, devem fazê-lo com um certo delay e sem perder a noção que lhes compete registar o que acontece também no passado.” Esse delay confere-lhes a distância necessária para olhar com serenidade para o presente e avaliar aquilo que terá um impacto duradouro no futuro. E para reagir a estas “preocupações legítimas” com a forma como as mulheres são representadas nos museus, quer nas obras de arte, quer na lista dos autores, deve apostar na investigação e no programa de actividades, acrescenta Curtis. 

Sem efeitos retroactivos

Joaquim Caetano e Penelope Curtis concordam em pelo menos mais um ponto: os museus devem reger-se por critérios artísticos sem deixar que questões políticas, religiosas ou morais se lhes sobreponham. E isso é verdade tanto para a representação da mulher, como para a exposição de obras de artistas nazis ou de outros sobre os quais recaem suspeitas que causam grande desconforto (como os retratos que Balthus faz de meninas, objecto que grande atenção mediática no final do ano passado, a propósito do Metropolitan de Nova Iorque). 

“Os museus não se podem limitar a ser repositórios do bem, não podem ignorar a arte que é feita por pessoas cuja moral e a ética hoje seriam questionáveis. A função do museu não é decidir com base no carácter. Nem tudo o que o museu mostra vem do lado bom”, diz Curtis. Se assim não fosse, alguns dos artistas do século XIX e XX que trabalharam com crianças de formas que hoje consideraríamos inaceitáveis, por exemplo, ficariam à porta, explica a directora do Museu Gulbenkian, admitindo que lhe é difícil olhar para as fotografias preparatórias das pinturas de Balthus, sem que isso a leve a defender que os seus quadros devem ser retirados dos museus. 

Muitas das imagens que mais nos fazem pensar, argumenta por seu lado Caetano, perturbam-nos de alguma maneira, o que nos diz que está cumprido pelo menos um dos três grandes sentidos da arte de acordo com a tradição clássica, segundo a qual dela se espera que eduque, que dê prazer e que comova. “O sentido da comoção é dos três o mais escorregadio. O que comove é o que agita e isso quer dizer que a comoção também inclui as pulsões sexuais, o desejo. Há muitas mulheres nuas, é verdade, mas porque durante séculos a beleza foi considerada um atributo quase exclusivamente feminino.”

Pode ser-se sensível à denúncia da cultura de abuso sobre as mulheres, e até contribuir para ela, defende, sem deixar de apreciar um corpo feminino de grande sensualidade numa pintura, feita há 300 anos ou hoje. “Uma mulher nua num museu tem geralmente muitas camadas de leitura. Basta pensar nas Alegorias.”

Lembra Caetano que, durante muito tempo, os museus tiveram muito cuidado em mostrar os nus, sobretudo os do presente, e que houve épocas em que a moral vigente afectou de forma determinante a produção artística. Foi assim nos séculos XV e XVI, ainda sem museus como hoje os conhecemos, quando a religião mandou tapar os genitais às esculturas da Antiguidade que representavam deuses e heróis. “A Igreja mandou pôr parras e paninhos, o que não é propriamente underwear clássico…” Uma censura que hoje seria inaceitável. 

“Lamento imenso, mas estas coisas não têm efeitos retroactivos. Não podemos pôr uma pintura de há 500 anos a falar dos valores que temos hoje e também não podemos mostrar do passado apenas aquilo que não entra em contradição connosco. Isso é próprio das ditaduras.” 

Isso não impede que reconheçamos, de qualquer forma, que a maneira como olhamos para a arte não é imutável, é dinâmica – está intimamente ligada ao contexto em que nos encontramos, a um espaço e a um tempo determinados. “É importante que estas questões se discutam, mas a cultura não pode ser feita de um mundo almofadado que empurra todos os artistas sacanas e tudo o que nos incomoda para as reservas, um mundo que tem medo das imagens e das palavras.”

O que intriga este historiador de arte é que seja grande a polémica em torno de obras que representam o corpo feminino e que nada se diga em relação às que mostram uma violência extrema sobre homens, mulheres e até crianças. “Porque nos preocupamos tanto com o sexo e não nos incomoda uma degolação de São João Baptista, um Rapto das Sabinas nem um Massacre dos Inocentes? Se os critérios de idoneidade moral de catequista substituíssem os artísticos, por mais subjectivos que possam ser, e a necessidade de contar uma história coerente e sem grandes solavancos todas estas obras desapareceriam…Faria sentido? Claro que não. E faria sentido substituir a cabeça de São João Baptista por uma bola para não ferir os mais sensíveis e pôr o rei Herodes a perseguir rapazes com mais de 21 anos? Também não.”

Notícia corrigida a 14 de Fevereiro às 17h: a conferência de Fernanda Fragateiro aconteceu em Lisboa e não em Pequim; a visita da artista Judith Shea foi em 1989 e não em 1997. As nossas desculpas.

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