Wall Street transformou o medo num investimento e agora assustou-se
As quedas abruptas das bolsas norte-americanas que se registaram esta semana destaparam um novo e sofisticado problema financeiro: os produtos de volatilidade
Há duas semanas, o presidente do Barclays fez um intrigante aviso em Davos: “anda por aí alguma coisa no mercado de capitais… Os mercados de acções estão num máximo de sempre e a volatilidade está num mínimo histórico… esta premissa não é sustentável”, alertou Jes Staley. Duas semanas depois, um médio mas intenso abalo nas bolsas mundiais, com epicentro em Nova Iorque, foi acompanhado por uma súbita escalada do índice que antecipa as oscilações futuras do mercado, isto é, a sua volatilidade. Pelo meio, descobriu-se um mundo novo de produtos financeiros artificiais que acentuou as perdas em Wall Street e já provocou danos em algumas carteiras de pensionistas e pequenos investidores.
As bolsas dos Estados Unidos viveram a pior semana dos últimos sete anos, contagiando Europa e Ásia de tal modo que a perda global de valor nos mercados bolsistas de todo o mundo chegou aos cinco biliões de dólares (trillions, em inglês) no final desta sexta-feira. O receio de uma inversão do ciclo de taxas de juro baixas, perante os sinais de um aumento da inflação, levou os investidores a procurarem recolher os ganhos que foram acumulando nas valorizações quase ininterruptas das acções nos últimos largos meses. As bolsas europeias fecharam ontem no mínimo de cinco meses, as asiáticas em valores tão baixos como não se viam há dois anos.
Este movimento global de fuga ao risco foi, no entanto, acelerado por dois factores específicos da indústria financeira. Entre todos, o facto de a esmagadora maioria de transacções ser feita de forma automática, através de mecanismos que accionam a venda assim que o valor dos títulos cai abaixo de determinado nível, ou de algoritmos que replicam em massa as decisões orgânicas dos investidores humanos. Segundo um especialista de bolsa, citado esta semana pelo Jornal de Negócios, apenas 10% da negociação é feita de forma tradicional em Wall Street.
Mas a par desta automatização dos mercados, as quedas vincadas desta semana permitiram perceber um outro motor financeiro que até agora era relativamente desconhecido: a transformação da volatilidade num activo financeiro, empacotado em produtos de investimento que invadiram as carteiras não só de fundos de alto risco, mas também de fundos de pensões e contas de pequenos investidores.
A “bomba” da volatilidade
Durante os últimos anos de relativa calma nas bolsas norte-americanas, marcada por uma gradual mas lenta valorização das bolsas e taxas de juro em valores residuais, a indústria financeira procurou por novas formas de rentabilidade. E descobriu uma que estava à vista de todos, mas que nunca tinha sido abordada numa lógica de investimento: o índice VIX, criado em 1993 como medida de avaliação das oscilações dos mercados.
Durante largos anos foi apelidado de “barómetro do medo”, porque permitia antecipar as variações a alguns meses de distância, com base nas posições futuras assumidas pelos investidores. Sempre que o VIX mostrava alguma turbulência, os investidores posicionavam-se com antecedência, num jogo em equilíbrios entre investimentos de curto prazo e apostas de longo prazo. Na crise financeira que teve a queda do Lehman Brothers como expoente máximo do pânico accionista, o “barómetro do medo” ganhou algum mediatismo, mas desde o regresso da calma financeira navegou em águas calmas durante muito tempo.
Até segunda-feira. Com as fortes quedas dos índices em Wall Street, o VIX disparou e registou a maior subida diária em dois anos. Regressou a valores mais baixos ao longo da semana, mas nunca aos mínimos em que andou durante anos.
Foram esses mínimos que estimularam a criatividade dos maiores bancos de investimento do mundo a usá-los como arma de rentabilidade. Numa complexa e sofisticada arquitectura, transformaram expectativas sobre as subidas e descidas das acções num activo com valor intrínseco. No fundo, se as apostas sobre a evolução futura de uma acção se cumprissem, o investidor neste produto ganhava, ao ritmo de uma rentabilidade pré-definida. Dado o sucesso inicial que suscitou nos investidores de alto risco – que podiam assim capitalizar a previsibilidade que tinham deixado de ter com o valor residual e até negativo das taxas de juro, que cumpriam antes esse papel –, os produtos de volatilidade foram empacotados e vendidos a investidores menos informados.
Efeito "bola de neve"
O diagnóstico deste episódio é feito em duas partes: os produtos directamente associados ao VIX, criados pelo Barclays, de Jes Staley, não valerão mais que oito mil milhões de dólares, segundo dados da Bloomberg. E com o susto de segunda-feira, alguns bancos como o Credit Suisse liquidaram os produtos e assumiram as perdas, limitando os danos próprios e reduzindo a dimensão deste mercado. Nessa compensação dos danos sofridos, foram vendendo outros activos, acelerando as perdas accionistas e agravando ainda mais a volatilidade cuja passividade tinham procurado rentabilizar.
No entanto, há um efeito que ainda não se conhece e que tem a ver com a extensão nas carteiras dos pequenos investidores destes produtos (engavetados na categoria de derivados financeiros, que movimentam ao todo perto de três biliões de dólares só nos EUA). “Nos últimos seis meses, os investidores de risco [hedge funds] recuaram e o retalho [pequenos investidores] entrou”, reconheceu um gestor de investimento à Reuters. Um cenário igual, ainda que em menor escala, ao que aconteceu durante a crise do subprime, quando os bancos empacotaram crédito tóxico (sem garantias) em massa e encheram as carteiras de investimento de todo o mundo, provocando uma crise financeira global sem precedentes. O contágio dos produtos de volatilidade ao retalho poderá levar mesmo, segundo os peritos citados pela Reuters, à intervenção dos supervisores, dependendo da dimensão das perdas que forem aparecendo nas próximas semanas ou meses.
“Assumi algumas perdas”. Foi assim que o operador independente de New Jersey, DJ Thompson, resumiu à Reuters os efeitos daquilo a que a Bloomberg chamou esta semana de “bomba” da volatilidade. Thompson perdeu, numa semana, tudo o que tinha ganho nos últimos cinco meses nestes produtos. E fez um diagnóstico empírico: “é seguramente uma má onda que anda por aí para muitos investidores”, ecoando à sua maneira as palavras do presidente do Barclays em Davos.