O quarto pilar

Temos o direito a esperar que o Estado nos proteja em caso de catástrofe, mas não podemos deixar de fazer a nossa parte.

Ao longo dos últimos anos, pelo menos desde 2000, temos assistido a várias mudanças no sistema nacional de Gestão dos Incêndios Florestais. Em 2002, pouco antes do ano desastroso de 2003, foi criada a Autoridade Nacional de Protecção Civil (ANPC) e extinguiu-se a Comissão Nacional Especializada de Fogos Florestais (CNEFF). Em 2004 foi criada a Agência para a Prevenção dos Incêndios Florestais (APIF) e, mais tarde, a Autoridade Nacional para os Incêndios Florestais (ANIF). Após o desastre de 2005, a APIF e a ANIF foram ambas extintas.

Em 2006, por meio do Decreto-Lei 124/2006 foi feita uma reforma marcante do sistema, que passou a designar-se por Sistema Nacional de Defesa da Floresta Contra os Incêndios Florestais (SNDCIF). Segundo era dito, este sistema assentava em três pilares, a saber, o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), a ANPC e a GNR. Tratava-se na altura de uma conceção inovadora, pois introduzia, pela primeira vez na história da gestão dos incêndios florestais em Portugal, a GNR como uma entidade fundamental no processo.

Nos mais de dez anos de experiência do sistema, seria apropriado fazer uma reflexão alargada do modo como, melhor ou pior, operou e serviu o país. Não tenho a pretensão de o fazer neste lugar, tal foi a diversidade de situações e de actuações. Em traços gerais, direi que o pilar da Protecção Civil se estruturou, consolidou e, na temática dos incêndios florestais, manifestou uma eficácia crescente na supressão dos focos de incêndio nascentes. No ano de 2017, por razões diversas, a Protecção Civil deitou por terra uma boa parte do edifício que tinha construído, ao ponto de se situar, talvez, agora numa grande necessidade de reencontro consigo própria e com o país.

A GNR, que chegou a ser contestada por algumas pessoas no início, com uma grande dose de profissionalismo, discrição e bom senso, soube afirmar-se e conseguiu posicionar-se dentro do sistema, como uma entidade fiável, eficaz e mesmo imprescindível. Direi que é, no âmbito dos incêndios florestais, talvez a que desempenha funções mais diversificadas e por isso mais integradoras de todos os processos.

O terceiro pilar, o ICNF — que mudou de nome várias vezes durante os últimos anos —, é infelizmente o que se tem mostrado menos operativo. Por diversas circunstâncias tem-se afastado cada vez mais do problema, perdendo terreno e funções, quase sempre para a GNR. Parece que os seus dirigentes se desfocaram da realidade de que existem incêndios florestais em Portugal, desistiram de ter uma visão estratégica e têm deixado cair quase tudo o que tinham nas mãos. Tornou-se uma entidade burocrática, em que não é fácil vislumbrar a presença activa no terreno e um acompanhamento do problema, mesmo nas poucas tarefas que reconhecidamente lhe estão acometidas.  

Sempre considerei que, tanto no discurso oficial como na prática, este Sistema assentava na visão do Estado como uma entidade que “pode, quer e manda”, admitindo que, com os seus recursos e instituições, consegue gerir e supostamente resolver o problema da defesa da floresta contra os incêndios. O facto de assentar em três entidades estatais corresponde a alguma autossuficiência, que, nalguns casos, se poderia traduzir em arrogância. Por este motivo defendo desde há vários anos que falta ao sistema um outro pilar que designo por “População”.

Por população entendo todo o resto da sociedade que não esteja contida nas três entidades mencionadas. Sendo mais explicito, considero que são os cidadãos comuns, os autarcas que os representam e enquadram, as empresas, as associações, as fundações, a comunidade científica e todos quantos querem, podem e devem dar o seu contributo para a resolução do problema.

Quando falo da população, refiro-me muito em especial às pessoas que fazem uso da floresta, no sentido lato, que somos afinal todos nós. Como é bem-sabido, um dos principais factores que contribuem para a gravidade do problema dos incêndios florestais em Portugal é o grande número de ocorrências (ignições) que registamos, sobretudo em dias com elevado risco de incêndio. Sabemos bem que são frequentemente as pessoas, os cidadãos comuns — e não apenas os criminosos ou terroristas, como por vezes, para descansar a consciência, admitimos que são —, quem, por qualquer motivo, ou sem ele, acaba por dar início aos incêndios. Enquanto não se cativar este enorme número de pessoas para esta causa, não conseguiremos ganhar esta guerra, por mais sapadores que se constituam, bombeiros que se contratem ou aviões que se comprem.

Enquanto as pessoas não compreenderem o papel e a responsabilidade que lhes cabe, antes de mais, na sua própria defesa e na dos outros e do bem comum, continuaremos a ver as casas e edificações nos espaços rurais, e não só, envolvidas de vegetação e de material combustível. Na aproximação dos incêndios as pessoas ficarão à espera, uma vez mais, que algum dos outros pilares os venha socorrer. Não há dúvida que temos o direito a esperar que o Estado nos proteja em caso de catástrofe, nomeadamente de um incêndio florestal, mas não podemos deixar de fazer a nossa parte.

O Estado, por sua vez, não pode esperar que esta actividade surja de modo espontâneo e articulado, se não houver um esforço igualmente da sua parte. Nalguns casos trata-se apenas de enquadrar iniciativas válidas que estão em curso, apoiá-las, dinamizá-las e amplificá-las, em vez de lançar iniciativas próprias, muitas vezes desligadas da realidade e sem continuidade. Exemplo disso são as várias iniciativas de “aldeias seguras” que já surgiram e que continuam a surgir em diversos pontos do país. Qual é o caminho que se quer percorrer neste campo tão importante?

Outro exemplo é o das Unidades Locais de Protecção Civil, que desde a tragédia de Águeda, em 1986, têm mobilizado os cidadãos a constituírem as suas forças de autodefesa, pois muitos deles viveram o drama de ver os seus bens ser destruídos pelo fogo, sem que alguém os pudesse vir socorrer. É importante reconhecer que nas áreas rurais não vivem apenas escassas pessoas e quase todas elas já idosos e sem capacidades. A experiência mostra-nos que não é assim e que há muitas pessoas válidas que sabem defender o que lhes pertence, podendo ser uma ajuda valiosa para as forças de combate.

A presença e actividade das pessoas nos espaços rurais constitui um benefício para todos nós, pois são a garantia da sustentação e da vida nessas áreas. No limite, importa dar-lhes condições de vida dignas e, acima de tudo, condições de conforto e de segurança, equivalentes às que dispõem os habitantes dos espaços urbanos.

Em 2017 este quarto pilar informal manifestou-se de uma forma muito evidente. Os cidadãos sentiram — talvez mais do que nunca — que o problema dos incêndios florestais diz respeito a todos. Não apenas aos bombeiros e aos que vivem ou trabalham nos espaços rurais. As pessoas passaram do sentimento para a acção, com uma expressão de generosidade nunca antes vista em Portugal. Esse simples facto colocou em evidência a impreparação das entidades governamentais para absorver e enquadrar esta disponibilidade e iniciativa. Apenas para citar um exemplo: a campanha de apoio financeiro que surgiu por iniciativa de várias entidades e que mobilizou a enorme generosidade dos cidadãos mostrou como nos falta organização e prática para fazer chegar os recursos dos cidadãos a outros cidadãos, de uma forma célere, mas ao mesmo tempo justa e equitativa.

Apesar da importância deste pilar, continuo a não ver medidas que se dirijam a reforçar a participação dos cidadãos e da sociedade civil na resolução do problema. Em especial não vejo medidas que estejam dirigidas a melhorar a situação dos que vivem nos espaços rurais e que estão mais directamente expostos ao risco de incêndio.

Professor do Centro de Estudos sobre Incêndios Florestais da Universidade de Coimbra

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