A Carantânia, exemplo de democracia e independência

O essencial da democracia, que é a vontade do povo representada pelo governo, existiu também naqueles tempos.

Políticos eslovenos e portugueses têm realizado encontros relacionados com a presidência conjunta da União Europeia pelos dois países em 2021. O primeiro-ministro, António Costa, deslocou-se recentemente à Eslovénia a fim de se encontrar com o seu homólogo Miro Cerar e, no início deste mês, o presidente da Assembleia da República da Eslovénia, Milan Brglez, visitou Lisboa, após o presidente da Assembleia da República de Portugal, Eduardo Ferro Rodrigues, ter também visitado a Eslovénia. Tais encontros, organizados pelo embaixador da Eslovénia Matjaž Longar, entre outros, aconteceram pouco antes do dia 8 de Fevereiro, o Dia da Cultura Eslovena, que celebra o maior poeta esloveno, que viveu na época do Romantismo, no dia da sua morte. Em memória deste grande poeta, têm lugar múltiplos eventos culturais com leitura de poesia em espaços públicos de toda a Eslovénia e também na intimidade das casas de algumas famílias.

Neste dia recorda-se que a independência da Eslovénia muito deve à intervenção dos escritores, pois foi sobretudo graças à literatura e à língua eslovenas que se manteve uma certa independência não formal ao longo dos séculos. Os primeiros manuscritos em esloveno são do século X e o primeiro livro esloveno foi escrito no século XVI por um padre protestante Primož Trubar. Apesar de a Eslovénia ser um país predominantemente católico, deve-se ao protestante Jurij Dalmatin a primeira tradução da Bíblia, também no século XVI. Com os primeiros livros, estabeleceu-se uma base para a futura criação literária que culminaria com a obra poética de France Prešeren, influenciado por vários poetas, entre os quais se conta o português Luís de Camões. Numa época em que os irmãos Schlegel afirmavam que um povo não pode ser nação se não tem poesia erudita, Prešeren e o seu círculo de intelectuais desenvolveram a poesia erudita eslovena para provar que os eslovenos eram uma nação.

A declaração oficial da independência eslovena é relativamente recente (1991) e ocorreu de uma forma democrática fundamentada nos direitos básicos da Constituição jugoslava de 1974, segundo a qual todas as nações da federação tinham o direito de decidir separar-se do resto do país. No referendo realizado em Dezembro de 1990, participaram 93,2% dos eleitores, 95% dos quais votaram pela independência.

No entanto, é pouco sabido que os antepassados dos eslovenos já tinham sido um povo independente pagão em tempos remotos, o que é referido por Prešeren no cancioneiro Krst pri Savici (Baptismo ao Lado de Cascata Savica). A Carantânia foi um “estado” fundado no século VII, cujo regime democrático foi descrito pelo jurista Jean Bodin em Les Six Livres de la République e despertou o interesse de alguns políticos, como Thomas Jefferson, terceiro Presidente dos EUA para o qual a obra de Bodin foi uma fonte de inspiração. Este jurista do século XVII descreve uma cerimónia de investidura que se realizava para dar posse ao governador da Carantânia. Tratava-se de um procedimento democrático em que o futuro governador jurava que exerceria o seu cargo procurando o bem-estar do povo. A pedra do governador, que ainda existe perto da cidade de Saint Vitus no actual território austríaco, é um dos vestígios dessa cerimónia de investidura. Segundo a descrição de Bodin e de alguns historiadores, a cerimónia era dirigida por um camponês que se sentava numa cadeira de pedra. Tinha à sua direita uma vaca negra e à sua esquerda um burro magro e estava rodeado pelo povo. O futuro governador aproximava-se acompanhado por muitos senhores vestidos de vermelho e transportando insígnias, contrastando com o candidato a governador que vinha vestido como um pobre pastor e com um cajado na mão. O camponês sentado na pedra perguntava na língua eslava dos antepassados dos eslovenos: “Quem é este que caminha tão orgulhosamente?” E o povo respondia que era o seu príncipe. O camponês perguntava se era um bom juiz que procurava o bem-estar do país e do povo e se era um homem livre digno de honrarias que respeitava a religião. O povo respondia que era e seria. O camponês soprava levemente no futuro governador, libertando-se assim das suas responsabilidades públicas e o novo governador sentava-se na pedra substituindo o camponês e brandindo a sua espada. Em seguida, falava para o povo prometendo ser justo. Ia à missa ainda vestido como um pastor e só depois vestia o traje de governador. Voltava a sentar-se na pedra e recebia homenagens e juramentos de fidelidade.

A Carantânia é considerada o primeiro “estado” eslavo e o ritual descrito por Bodin tem símbolos que estão presentes na teoria da democracia contemporânea. O camponês sentado no lugar do futuro imperador representa a empatia que deve haver entre os membros da nação que são iguais perante a lei. O futuro governador incorpora também a classe desprotegida simbolizada pelo vestuário de um pobre pastor. Nas crenças antigas, o sopro tinha o significado do espírito, ou seja, quando o camponês sopra sobre o futuro governador, transmite-lhe supostamente o espírito do povo, o que, transposto para o governo de hoje, representa a solidariedade entre as várias classes sociais, desejável numa nação democrática.

A noção de democracia mudou ao longo dos tempos e é óbvio que o governo democrático actual se manifesta de uma maneira bastante diferente da democracia alto-medieval da Carantânia. No entanto, o essencial da democracia, que é a vontade do povo representada pelo governo, existiu também naqueles tempos, ou seja, a promessa ao povo de se trabalhar pelo bem-estar do país e do povo e em função da justiça dever-se-ia cumprir hoje em todas as democracias.

Os ideais universais que se supõe serem os de uma nação democrática são também apresentados no poema de Prešeren intitulado Zdravljica (Brinde), do qual se retirou a letra do actual hino esloveno, que proclama: Vivam todas as nações que anseiam por dias de paz, liberdade e união entre os povos de toda a terra.

Sugerir correcção
Comentar