Imaginar mundos para (sobre)viver melhor

Os coreógrafos Patricia Apergi e Euripides Laskaridis representam a Grécia no GUIdance com espectáculos em estreia nacional: quinta e sábado no festival.

Foto
Cementary, de Patricia Apergi, esta quinta-feira no grande auditório do Centro Cultural Vila Flor TASSOS VRETTOS

A Grécia aterra em dose dupla na segunda semana do festival GUIdance 2018. Esta quinta-feira, Patricia Apergi apresenta Cementary no grande auditório do Centro Cultural Vila Flor, sábado é a vez de Titans, de Euripides Laskaridis, na black box do Centro Internacional das Artes José de Guimarães. Dois espectáculos em estreia nacional numa edição em que a Grécia foi escolhida como uma das “geografias na bússola” do festival, explicava o director artístico Rui Torrinha em Dezembro.

Tanto Patricia Apergi como Euripides Laskaridis têm uma ligação prévia a Portugal: ambos estiveram em residência artística n’O Espaço do Tempo, em Montemor-o-Novo, com os trabalhos que agora trazem ao GUIdance. Apergi passou também pelo Centro de Criação de Candoso, em Guimarães, naquele que foi um dos “dois longos períodos de preparação” de Cementary, espectáculo que habita “uma cidade imaginada que sobreviveu a uma espécie de catástrofe, de grande crise”, diz ao PÚBLICO a coreógrafa, co-fundadora da Aerites Dance Company.

As cidades e os espaços urbanos são eixos temáticos quase omnipresentes nas coreografias de Apergi – como em Planites, apresentado no GUIdance de 2015. Para esta nova peça, a criadora de 38 anos olhou de frente para uma das consequências da crise económica que assombra a Grécia desde 2010: o crescimento galopante dos sem-abrigo nas ruas de Atenas. “A ideia para fazer Cementary surgiu quando observava as muitas pessoas que vivem nas ruas da minha cidade. Pessoas da minha idade, mais novas e mais velhas. E temos a crise dos refugiados aqui à porta, muitos deles sem-abrigo também.”

Foto
Cementary, de Patricia Apergi IOANNA CHATZIANDREOU

Nesse processo, Patricia Apergi tentou perceber como é que estes corpos reagem a “circunstâncias que não lhe são naturais”. “Como conseguem sobreviver ao frio ou como conseguem adaptar-se a espaços muito estreitos quando dormem”, exemplifica. Verteu depois essa análise para uma coreografia contida e pendular. “Cheguei à conclusão de que não podia usar uma dinâmica muito explosiva como nos meus trabalhos anteriores.” E essa não é a única diferença relativamente ao que fez no passado: “pela primeira vez”, a coreógrafa arriscou “fazer algo que pertencesse ao futuro”. “No meu país, a maioria das pessoas da minha geração sente-se totalmente perdida e nem se atreve a pensar no futuro. Agora a Grécia não aparece nas notícias, mas está cada vez pior”, assinala Apergi. “Eu forcei-me a pensar no futuro e a procurar alguma esperança." É uma questão de vida ou morte, atira ela, causticamente e sem rodeios. “Se não encontras esperança dentro de ti mais vale cometeres suicídio.”

Em Cementary, essa esperança é ensaiada através do colectivo. “A sociedade de Cementary não tem nada, até o céu lhe é roubado. Mas através das relações que as pessoas criam entre si uma luz começa a surgir… Só se nos apoiarmos mutuamente é que podemos tornar-nos mais fortes.” Um cliché, admite a coreógrafa, mas um cliché “necessário”, sobretudo numa Grécia “em luto”. A mensagem faz-se ouvir pelos corpos em palco. “Estes corpos estranhos, de uma beleza não convencional, sentem-se agora miseráveis, mas se calhar isso pode transformar-se numa arma.”

Titans, de Euripides Laskaridis, não dialoga, pelo menos de uma forma tão concreta, com a actual crise grega, mas é possível traçar pontos de contacto com o espectáculo da compatriota: a vontade de imaginar outros mundos que rasguem com ideias hegemónicas de beleza e de existências perfeitas. “Na cultura ocidental em que crescemos, aprendemos a desejar um ‘eu’ imaculado. O erro, a falha, o imperfeito e o defeituoso são ostracizados. Titans, com todo o seu amor pela humanidade, procura tornar-se um relicário da confiança perdida, do desconhecido, do imprevisível”, resume Euripides Laskaridis, que é também um dos dois intérpretes e o cenógrafo do espectáculo.

Foto
Titans, de Euripides Laskaris ELINA GIOUNANLI

Co-produzido por uma série de instituições, incluindo o Centro Cultural Vila Flor e o parisiense Théâtre de la Ville, e inspirado na mitologia grega – com “ironia, cinismo e sarcasmo” à mistura –, Titans desenvolve-se segundo uma cosmologia estranha e alienígena, num cenário ficcional visualmente intenso com criaturas macabras, onde fica bem sublinhado o gosto de Laskaridis pelo grotesco. Nesse aspecto, e apesar das diferenças, nota o coreógrafo, esta peça “alimenta-se” da sua criação anterior, Relic. “O sentido saturado e grotesco do meu universo artístico é um denominador comum nos dois trabalhos. As artes performativas no geral, seja o avant-garde, o burlesco, o comercial, e mesmo o cinema, são uma inspiração para mim.” 

Sugerir correcção
Comentar