O paradoxo do encenador

Convocar cinco actores para recriarem as suas experiências é uma proposta generosa, mas também um terreno armadilhado em que o encenador acabou por se perder, fazendo com que o espectáculo, longo, longuíssimo, chegue a ser penoso. Resta aquilo que é afinal razão de ser da proposta, o prazer de apreciar excelentes actores.

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Ensaio da peça Actores com encenação de Marco Martins. E Nuno Lopes, Miguel Guilherme, Bruno Nogueira, Rita Cabaço e Carolina Amaral Rui Gaudencio

O palco é todo feito de painéis brancos e de um dos lados, ao fundo, há uma cabine de som e imagem. Um a um, os actores vão entrando aí, pegam numa folha e lêm um texto que uma voz gravada lhes vai indicando com que sentimentos — expressos num painel electrónico sobre a cabine — o enunciar, dor, prazer, angústia, etc., e ouvimos a voz deles por via de um microfone e vemo-los num ecrã. É como um screen test, para escolha de actores e de um elenco, em que a voz invisível é o centro da direcção e do espectáculo.

Mas esse momento não demora muito, a voz apaga-se e o palco pertence por inteiro aos actores que vão relatando e reinterpretando os seus percursos cénicos e esta passagem de protagonismo do realizador/encenador para os actores é um gesto muito bonito.

Que memórias traz cada um? Como tem sido o seu percurso profissional? A que tarefas se entregaram? Qual é a condição do actor hoje em Portugal?

No programa Marco Martins relata que, enquanto trabalhava na encenação de A Dança da Morte de Strindberg, via aflito um dos actores, no camarim, a braços com o texto que tinha de memorizar para as gravações de uma telenovela. “E aquilo perturbava-me”, diz. E mais acrescenta: “Penso que poucas pessoas têm a noção da precariedade e instabilidade que caracteriza o trabalho do actor em Portugal, onde, muitas vezes por razões estritamente económicas, o intérprete se vê obrigado a conciliar dois ou três trabalhos simultaneamente.” Aconteceu que essa realidade se fez sentir no próprio processo de construção deste espectáculo.

Actores é assinado como uma co-criação de Bruno Nogueira, Luísa Cruz, Miguel Guilherme, Nuno Lopes e Rita Cabaço. Sucede que Luísa Cruz não está em cena, porque o real se intrometeu no próprio espectáculo, ou no processo da sua construção: para a actriz tornou-se insustentável estar nos ensaios e ao mesmo tempo a gravar uma novela. Mas Luísa Cruz é alguém de excepção e Marco Martins quis mantê-la enquanto “personagem”, ao que a própria acedeu – e, assim, enquanto os outros se representam a si mesmos, são eles próprios e uma personagem que se multiplica pelas muitas que foram interpretando ao longo do seu percurso, Luísa Cruz é “interpretada” por Carolina Amaral, praticamente uma desconhecida que é uma grande revelação.

Para quem conhece Luísa Cruz, os seus muitos e grandes talentos e o seu percurso, “reconhecê-la” representada por Carolina Amaral é um dos aspectos mais tocantes do espectáculo, que os tem vários, sentidos por cada espectador consoante o conhecimento que tem de cada um daqueles actores e do prazer. Por exemplo – exemplo pessoal – faz-se um flash quando se vê Miguel Guilherme deitado exactamente como em O Dragão de Evgueni Schwartz, o espectáculo da Comuna em que, em 1980, o “descobrimos”.

Há momentos hilariantes em que, todavia, se torna também patente quanto esse concreto momento foi penoso para o actor, por exemplo, quando Bruno Nogueira relata como a oportunidade profissional que lhe surgiu não foi participar num espectáculo, mas fazer de pastor num quadro de Natal no Corte Inglês – e momento hilariante não apenas pelas características sui generis de Bruno Nogueira, como também pelo modo como Nuno Lopes, com voz melosa e microfone, chama as pessoas para virem assistir ao quadro.

Mas, de modo desde logo intrigante, a 1.ª parte de Actores termina em ambiente tipo de discoteca e a 2.ª inicia-se em tom reiterado de comicidade.

Sucede que essa comicidade suscita em grande parte do público, de modo perturbante, uma reacção condicionada, e as gargalhadas não param. Chega a ser insustentavelmente penoso, e por certo desde logo para o próprio actor, que quando Nuno Lopes retoma o grande discurso tribunício de Marco António no Júlio César de Shakespeare continuem as gargalhadas!

E mais sucede que o espectáculo se arrasta numa sucessão de memórias e momentos de todo excedentária. Extractos como os de A Conquista do Pólo Sul de Manfred Karge, Azul Longe nas Colinas de Dennis Potter, A Estupidez de Rafael Spregelbund ou Grande Paz de Edward Bond tornam-se excrescências.

Os actores são eles próprios e uma personagem que se multiplica por muitas. Num texto fundamental da história da estética teatral, Le Paradoxe sur le comédien, Diderot pôs em confronto os actores que sentem as emoções que interpretam e aqueles que pela inteligência aparentam senti-las. Em Actores os intérpretes oscilam entre uma e outra posição. Mas, parafraseando Diderot, há sobretudo um “paradoxo do encenador”, hesitante entre dar todo o espaço aos actores ou dirigi-los, hesitante perante todo o material recolhido no processo de ensaios.

Ao realizador que Marco Martins também é faltou neste caso um trabalho de montagem, aquilo que no cinema ele concretamente faz com um montador alheio ao processo de filmagens, e que vai construindo um ponto de vista – em diálogo com o realizador – sobre o material com que se depara. E por isso Actores, generosa proposta de solicitação de excelentes actores, acaba, apesar dos seus vários momentos tocantes, por se arrastar até ao ponto de ser penoso.

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