Racismo(s)

Recuso-me a ser apontado, tal como os meus descendentes até à eternidade, como sendo detentor de uma culpa pessoal ou geracional que não me cabe.

Confesso que considero o racismo algo tão irracional e estúpido que tenho até dificuldade em compreender o raciocínio dos racistas. Por outro lado, tenho dificuldade em olhar o mundo e constatar tanta hipocrisia e tantos preconceitos estereotipados sobre esta matéria.

Em 2001, a ONU promoveu a maior alguma reunião mundial alguma vez realizada sobre o problema do racismo. Durante uma semana países de todo o mundo reuniram-se na África do Sul para discutir esta questão. O resultado foi uma discussão mínima e marginal sobre o racismo e um gigantesco aproveitamento político de grupos de países que se antagonizaram em planos muito distintos deste. A desonestidade dos políticos mundiais pareceu estar ao nível da sua impressionante impreparação.

Os países árabes impuseram a inclusão, no documento final da conferência, da condenação de Israel como entidade intrinsecamente racista, por considerarem que o sionismo é equivalente a racismo. Sublinhe-se que o sionismo é o movimento que defende que o povo judeu, disperso pelo mundo por perseguições sistemáticas ao longo de séculos, possa retornar à sua terra natal, que veio a tornar-se no atual Estado de Israel. Não cabe neste artigo analisar (o que já fiz anteriormente em muitos locais) o problema israelo-palestiniano, que decorre de culpas e erros mútuos, mas é fundamental considerar uma patética aberração conceptual a tentativa de classificar o sionismo como racismo. Os dois conceitos não possuem qualquer proximidade. O racismo passou a ser um conceito instrumentalizado.

Perante essa imposição dos países árabes, os Estados Unidos e Israel abandonaram a conferência e a União Europeia ameaçou fazer o mesmo. A África do Sul de Nelson Mandela, com uma compostura que em minha opinião foi a mais elevada entre todos os participantes, condenou essa tese dos países árabes e tentou, tal como a União Europeia, negociar um acordo que salvasse a iniciativa do colapso total. Mandela condenou quer o anti-islamismo quer o anti-semitismo, num documento que os países árabes radicalmente rejeitaram.

Contudo, talvez mais interessante que analisar essa conferência propriamente dita seja refletir sobre os interesses que se jogam nos bastidores.

A escravatura pelas potências ocidentais foi abolida há cerca de 160 anos. Como ocidental lamento o que ocorreu, mesmo no contexto dos valores e das sensibilidades da época, que eram muito diferentes das sensibilidades contemporâneas. Sinto-me chocado. Mas recuso-me a ser apontado, tal como os meus descendentes até à eternidade, como sendo detentor de uma culpa pessoal ou geracional que não me cabe. Por outro lado, enquanto alguns países equacionam a escravatura de há alguns séculos, parecem fingir ignorar que a escravatura continua a existir e é quase toda exercida por comunidades das nações em desenvolvimento sobre outras das mesmas regiões.

A escravatura tem sido galopante no Sudão onde as tribos árabes no norte, os Baggara, escravizaram os Dinka e diversas tribos da Núbia e das montanhas Ingessana. A escravatura sistemática existe também na Mauritânia, por exemplo. No séc. XXI, africanos escravizam africanos e essa escravatura é aceitável?

A conferência visou também o combate à discriminação étnica. Mas ninguém aí se atreveu a referir que no Japão os Burakumin eram marginalizados por serem considerados uma classe inferior. Na Índia persiste (na prática embora não na lei) o sistema de castas e 300 milhões de “intocáveis” são considerados como uma casta de seres inferiores, votados à discriminação e humilhação diárias e à canalização para os empregos mais sujos e degradantes. Afinal, depois de, durante décadas, a comunidade internacional condenar o apartheid sul-africano, por que motivo ninguém se preocupou com o apartheid indiano? Será porque este apartheid não era praticado por brancos? E, se o motivo é esse, então não será essa dualidade de critérios uma forma de racismo, ao permitir-se que uma comunidade cometa abusos discriminatórios que justamente se condenam numa outra comunidade?

O Iraque de Saddam assassinou milhões de curdos, no que foi uma perseguição étnica e racista. Na Alemanha e na Áustria o racismo recrudesce. No Reino Unido o racismo é visível. Nos Estados Unidos o racismo persiste e era sistemático e brutal ainda há poucas décadas. Na Austrália os aborígenes são discriminados, enquanto os árabes discriminam os berberes no Norte de África e em Myanmar isso sucede com várias minorias. Os russos discriminam os tchetchenos.

Em muitos países africanos existe um claro racismo contra brancos. No Zimbabwe o Presidente Mugabe assumiu uma prática arrogantemente racista relativamente aos brancos, incentivando publicamente a violência contra estes e apoiando contra eles ações de roubo, agressão, prisões arbitrárias, espancamentos e assassinatos, de uma forma tão repugnante que Nelson Mandela apelou publicamente ao povo do Zimbabwe para se livrar do “ditador”.

O tribalismo feroz que tantas guerras e milhões de mortos tem provocado é uma vertente do racismo. Bósnia, Kosovo, Burundi, Quénia, Uganda, entre muitos outros, são nomes que ecoam estas formas de racismo.

A discriminação e a intolerância são quase universais. No Afeganistão os Taliban pretendem enforcar pacíficos missionários cristãos e dinamitam estátuas budistas. Na Argélia extremistas islâmicos cortaram a garganta de mulheres e crianças, incluindo bebés de colo.

A África foi um continente explorado colonialmente, mas continua hoje a ser explorada, inclusive pelos seus próprios dirigentes políticos. Todos sabem que interesses materiais elevados (de ambos os lados) foram um fator de artificial continuação da guerra num país que bem conhecemos, porque responsáveis de ambos os lados lucraram com cada ano de guerra. Na Serra Leoa massacraram-se populações inteiras porque alguns necessitavam de controlar a riqueza dos diamantes locais. A riqueza pessoal de Mobutu era superior a toda a dívida externa do seu país.

Devemos olhar para o futuro em lugar de o gastar a lamentar e a acusar o passado. Na verdade, ao longo da história quase todos os povos passaram por períodos de domínio externo. Espanhóis, vikings, celtas, descendentes de Gengis Khan, portugueses e imensos outros povos, incluindo os próprios árabes que invadiram países que ainda hoje ocupam, seriam culpabilizáveis. Mas o passado está enterrado. O que interessa é construir a convivência de hoje e do futuro. Quem continua a tentar semear ódios com desculpas do passado é um novo racista.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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