É mesmo o século dos tribunais

Quem alvitra que volta a meter o génio judiciário na vasilha, não captou ainda os sinais de mutação constitucional.

1. Nos últimos trinta anos da nossa vida política, de tempos a tempos, vindo do fundo da alma democrática, emerge um rugido ou um clamor contra o advento iminente da “república dos juízes”. A “república dos juízes” aparece invariavelmente retratada como a última perfídia constitucional e habitualmente toma o nome de ressaibo sociológico “judicialização da política”. Este movimento de inquietação democrática assoma sempre que a conjuntura faz convergir alguns julgamentos e algumas investigações criminais invulgarmente mediáticos. De imediato, entre os que temem uma ditadura “judicialista”, se detectam e projectam no horizonte intenções político-partidárias, éticas de corpo e veleidades de protagonistas individuais. É justamente numa destas fases da vida democrática que nos encontramos.

 

 2. Importa, porém, tomar distância, pôr as coisas em contexto, limpar a espuma dos dias e olhar para o que é estrutural ou mesmo fundamental nas mudanças que atravessam as comunidades políticas. O apetite popular e mediático por episódios criminais e pelo julgamento dos “grandes do povo” – para usar a saborosa expressão de Montesquieu – nada tem de original e não prenuncia nenhum câmbio do equilíbrio de poderes. Fosse nos mercados, bolsas e praças medievais, fosse na sumarenta imprensa oitocentista, o crime foi sempre pasto tenro e largo da vertigem “voyeurista”. Ainda mais intensa e penetrantemente, se se tratasse da perseguição judicial dos poderosos. Por muito que isso possa ser atenuado e contido pelo escrúpulo de uma justiça garantista e pelo zelo de uma comunicação social responsável, alguma e até muita espuma (e o lodo que lhe subjaz) arribarão sempre à superfície. Onde não funcione esse rigoroso respeito pelo direito e pelos direitos – e nesta sociedade “hiper-comunicacional” o ambiente é geneticamente adverso –, a comunidade já só terá remédios. Meros remédios.

 

3. Feita esta ressalva, que não é de somenos, convém estar consciente de que o século XXI será mesmo o século dos tribunais. A questão que tem de se pôr é: de que tribunais? De que poder jurisdicional? Qual o seu lugar e função na constituição política destas comunidades plurais, porosas e poliárquicas dos nossos dias? No século XIX, que numa qualificação igualmente redutora e simplista, terá sido o século dos parlamentos, acreditava-se (na Europa) que o juiz era a boca que pronunciava as palavras da lei. Ou como diria Cícero que a lei era o juiz mudo. Em pleno delírio positivista, o juiz limitava-se a aplicar a lei ao caso e, por conseguinte, a sua legitimidade constitucional e política advinha integralmente da lei. Por isso, ele era também um funcionário, com um ingresso genérico na função (e não uma nomeação para um cargo), com uma carreira e uma disciplina. Era em tudo um funcionário, um alto funcionário, integrado nos serviços de um Ministério (que, porque não produzia leis, não beliscava a sua independência). A lei era produto do Parlamento e, portanto, o critério do juiz era totalmente exterior ao serviço em que se integrava (esta era também a sua “independência”). E claro, se a lei é um exclusivo do Parlamento e este goza de legitimidade democrática, então o juiz, na sua tarefa gloriosa de mero aplicador da lei, goza de legitimidade democrática. Daqui até ao dogma da irresponsabilidade não vai nem um salto: como pode ser ele responsável por uma decisão que é, apenas e só, do Parlamento? Ele não é senão é a “longa manus” do legislador e, por conseguinte, comunga do seu manto de legitimidade política.

 

3. Esta ordem e este mundo eram todavia largamente fantasiados. E mesmo onde não eram, cambiaram de modo avassalador. Começa por se questionar a própria “legalidade” da lei, isto é, a sua conformidade à constituição. E admitindo um controlo da constitucionalidade da lei, o juiz já não está sujeito à lei. A relação inverte-se: agora é ele que julga a lei, dizendo se ela cumpre ou não a constituição. A chegada do século XX, com o seu fascínio pelo executivo e com o crescimento da máquina estadual, passa-nos para o século dos Governos. E, heresia das heresias, estes começam também a legislar e a regular. O direito internacional e supranacional prolifera e impõe-se na esfera interna. Aquela relação íntima e sagrada com a lei parlamentar dissipa-se e com ela cai a justificação de todo o edifício da legitimidade e da responsabilidade. A que se soma todo um turbilhão de correntes e movimentos metodológicos, que alargam o espaço de decisão do juiz. Isto para não contar com a epidemia legislativa, que banaliza as normas, torna as leis incompreensíveis e exige que, em cada lide, o juiz seja um reconstrutor da ordem jurídica. Entretanto, a sociedade abre-se mais e mais, politizando áreas que antes pareciam inertes e que hoje têm a sua palavra final num tribunal (ambiente, questões fracturantes, etc). Num ápice, as salas de audiência converteram-se em instituições de arbitragem e regulação político-social. Com a crise da representatividade parlamentar e a crescente distância entre círculos eleitorais e os circuitos de decisão, o lado processual e deliberativo da democracia entrou em défice. E o lado substantivo ou material da esfera de direitos e de defesa da individualidade carece de uma protecção adicional, que já só os tribunais estão apetrechados a dar.

 

4.  São mudanças profundas que obrigam a repensar o poder judicial e o seu lugar nas nossas comunidades constitucionais. Quem julga que, nestas sociedades abertas e conflituais, vai essencialmente dirigir o processo político pela via legislativo-executiva, está rotundamente enganado. Quem alvitra que volta a meter o génio judiciário na vasilha, não captou ainda os sinais de mutação constitucional. Esse é o caminho que escolheram Putin e Erdogan e que trilham a Polónia, a Hungria, a Roménia. Mas não há regresso possível à idade do ouro.

Eis toda uma mudança a que teremos de voltar.

 

 

SIM. Alerta meteorológico. Diante dos riscos, em especial para os mais vulneráveis, a acção das instituições públicas e da comunicação social é muito positiva. A prevenção é sempre a chave.

 

NÃO. PS e listas transnacionais. Os dias passam, a votação em plenário é amanhã e o PS não sabe dizer se é a favor ou contra as listas transnacionais. Ninguém percebe e o país perde.

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