Peripécias de um frade agostinho na Espanha imperial

Escrito no início do século XVII, o romance Historia del Huérfano, testemunho vívido dos esplendores e das misérias da colonização espanhola, esteve a ponto de ser impresso em 1621, mas acabou por permanecer inédito e andou perdido durante séculos. Reencontrado em 1965, só agora foi finalmente publicado.

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As minas de Potosí numa gravura coetânea de Theodore de Bry DR

Historia del Huérfano (História do Órfão), um romance autobiográfico escrito no início do século XVII, narrando as peripécias de um frade granadino que percorre os vários territórios do império espanhol na América, mas também as cortes europeias, manteve-se surpreendentemente inédito durante 400 anos, tendo sido agora finalmente publicado na prestigiada Biblioteca Castro, uma colecção de clássicos da literatura espanhola. 

Assinado por Andrés de León, foi na verdade escrito, segundo a opinião unânime dos especialistas, pelo frade agostinho Martín de León y Cárdenas (1585-1655), a quem chamavam “o Órfão”, e que partiu jovem para as Índias, nome que os espanhóis então davam às suas colónias na América, tendo vivido num mosteiro em Lima, no Peru, antes de regressar à Europa, onde exerceu vários cargos eclesiásticos. Acabaria os seus dias como arcebispo de Palermo, na Sicília, então sob domínio espanhol.

Uma das razões que têm sido aventadas para a Historia del Huérfano não ter chegado a ser publicada na época é a possibilidade de Martín de León, em vias de iniciar uma carreira eclesiástica de relevo, ter preferido não divulgar uma obra de juventude recheada de episódios picarescos, e na qual, pese embora o seu ostensivo patriotismo, não ocultava as suas críticas à violência e à cobiça da administração colonial espanhola.

O que parece certo é que o romance esteve mesmo pronto a imprimir em 1621, já que a única cópia que subsiste do desaparecido manuscrito original, datada desse ano, tem todas as características de um trabalho profissional destinado a dar o livro à estampa. Mas mesmo esta cópia só foi descoberta em 1965, na Hispanic Society of America, em Nova Iorque, pelo investigador espanhol António Rodríguez Moñino, conta o correspondente do jornal inglês The Guardian em Madrid, Sam Jones. Até ao achado de Moñino, que percebeu a importância do manuscrito e recomendeu a sua publicação, nada se sabia deste romance, que esteve perdido e esquecido durante 350 anos. Um relato autobiográfico narrado na terceira pessoa que tem páginas, como as que relatam o saque de Cádiz, em 1596, pelas forças anglo-holandesas, e que a imprensa cultural espanhola já equiparou, na sua vivacidade, ao estilo do grande romancista espanhol Benito Pérez Galdóz (1843-1930).

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Se não se sabe ao certo por que motivo a obra não foi impressa em vida do autor, mais enigmático ainda é o facto de só ter sido publicada meio século após a descoberta de António Rodríguez Moñino, que viria a morrer poucos anos depois, em 1970. Belinda Palacios, a investigadora peruana responsável pela edição agora lançada na Biblioteca Castro, explica que se goraram várias tentativas anteriores de publicar o livro e alude mesmo,e m declarações ao Guardian, a rumores de que a obra estaria amaldiçoada.

“Quando comecei a trabalhar no livro, muita gente me disse que estava amaldiçoado e que as pessoas que lidavam com ele morriam”, contou Palacios. “Ri-me, mas estava um bocadinho apreensiva”, confessou, uma vez que era verdade que o atraso na publicação de Historia del Huérfano ficara mesmo a dever-se às mortes imprevistas de vários investigadores que a tinham precedido. “Um morreu de uma doença estranha, outro num acidente de viação, e um terceiro já não sei como."

Segundo Belinda Palacios, as 358 páginas do livro, que misturam ficção, memórias pessoais e documentação histórica – Martín de Léon serviu-se, por exemplo, de uma carta redigida por um dos generais que combateu as tropas de Francis Drake no ataque a Porto Rico, em 1595 –, oferecem um retrato rico e detalhado do mundo e da época em que o autor viveu.

Um homem do seu tempo

A investigadora sublinha ainda ao Guardian que o livro “dá uma perspectiva matizada” das conquistas espanholas. “Quando se lê este relato, vê-se que havia um espírito de aventura a motivar as pessoas, não era ‘vamos ali esmagar os índios e roubá-los’, era mais como um grande negócio no qual a aventura e a descoberta tinham um papel importante”. Mas Martín de León também não escondia, por exemplo, a corrupção e o caos que reinavam nas célebres minas de prata de Potosí, que no início do século XVII transformaram por algum tempo um vilarejo d e uma zona montanhosa do Sul da Bolívia na segunda cidade mais populosa do Ocidente, logo a seguir a Paris. Entre nativos peruanos e escravos levados de África, os trabalhadores das minas contavam-se por dezenas de milhares, e as mortes por fome, doença ou acidente eram constantes, a ponto de um contemporâneo, o frade espanhol Domingo de Santo Tomás, ter escrito: "Não é prata o que se envia à Espanha, é o suor e sangue dos índios."

O autor de Historia del Huérfano era “um homem muito do seu tempo”, avisa Palacios, não era um pioneiro da defesa dos direitos dos índios, como o fora o célebre dominicano Bartolomeu de las Casas. “Martín de León reconhece que a população indígena é maltratada e explorada e que a sua vida é dura, mas o que critica é que a explorem a ponto de a fazer desaparecer”, diz a investigadora, para quem a principal motivação do autor é defender os interesses espanhóis. “Tenho a impressão de que o que ele está a sugerir é que o sistema tem de mudar porque as populações locais estão a ser varridas do mapa e isso deixará de ser viável no longo prazo."

Mas o que Palacios mais admira no livro, e que a impediu de se aborrecer nos meses que levou a decifrar e transcrever pacientemente as 358 páginas do romance, é a capacidade de observação do dominicano, que consegue transportar os seus leitores para a época do vice-reino do Peru, uma divisão administrativa que nesta época englobava grande parte da América do Sul e da América Central.

Para lá da sua relevância enquanto testemunho histórico, Historia del Huérfano é também um romance pícaro, ao estilo barroco, com um protagonista cheio de contradições. Um filho de “pais mais nobres do que poderosos”, cuja natural inquietude de espírito empurra para uma vida aventurosa. Aos 14, deixa a sua Granada natal rumo ao Novo Mundo e participa, como soldado, nas guerras de conquista. Em Lima, comete a imprudência de enfurecer um marido ciumento e vê-se obrigado a refugiar-se num convento de frades agostinhos, onde acaba por descobrir uma genuína vocação religiosa, tornando-se missionário. Mas por razões que o texto enigmaticamente omite, é expulso da ordem e acaba na prisão.

O engenhoso frade consegue no entanto fugir, disfarça-se do soldado que outrora fora e tenta chegar a Roma, apostado em alcançar um perdão papal. Pelo caminho, não lhe escasseiam as aventuras e tem o privilégio de testemunhar episódios tão significativos como os já referidos ataques a Porto Rico e Cádiz, mas também a tomada de Ferrara pelo papa Clemente VIII ou as faustosas núpcias de Filipe III (II de Portugal) com Margarida de Áustria, celebradas em 1599 na catedral de Valência.  

Se o verdadeiro Martín de León foi frade em Lima e acabou arcebispo, o seu alter-ego semi-ficcionado regressa ao Peru, já perdoado pelo papa, para renunciar a todos os cargos eclesiásticos e acabar os seus dias como um simples monge no mosteiro agostinho.  

 

Notícia corrigida no dia 12 para atribuir as citações da investigadora Belinda Palacios, que foram feitas ao jornal The Guardian.

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