Depois de uma década de esforços, como está o lince-ibérico?

Estima-se que existam agora na natureza, em Portugal e Espanha, quase 550 linces-ibéricos. Apesar do sucesso da criação em cativeiro e da sua reintrodução no meio natural, o predador continua ameaçado pela escassez de alimento, a ocupação humana dos seus habitats e a baixa diversidade genética.

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Lince-ibérico DR

No Parque Natural do Vale do Guadiana, a reintrodução do lince-ibérico (Lynx pardinus) está a revelar-se promissora. Os 27 linces que deambulam num território com cerca de 125 quilómetros quadrados, distribuídos pelos concelhos de Mértola, Serpa e Castro Verde, dispõem de condições naturais para procriar e de uma razoável densidade de coelhos-bravos, o seu suporte alimentar, até agora únicas em Portugal. O Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) fez agora um balanço positivo três anos depois do primeiro casal de linces-ibéricos ter sido libertado em Portugal, na zona de Mértola.

Outrora abundante na Península Ibérica, o lince-ibérico teve um declínio acentuado na segunda metade do século XX, deixando menos de 100 animais em duas populações isoladas de Doñana e Serra Morena, na Andaluzia. E de Portugal, ao longo do século XX, foi desaparecendo. Por isso, em 2002 foi classificado com o estatuto de “criticamente em perigo” na Lista Vermelha de espécies ameaçadas da União Internacional para a Conservação da Natureza. Em 2015, o seu estatuto foi considerado menos gravoso (“em perigo”), devido aos programas de conservação e de reintrodução de animais na natureza. Em Portugal, o programa de reintrodução da espécie foi desenvolvido desde 2009, em conjunto com Espanha, no Centro Nacional de Reprodução do Lince-Ibérico, em Silves. No final de 2014, os primeiros linces (um casal) foram libertados num cercado de adaptação em Mértola e, em Fevereiro de 2015, abriram-se as portas deixando-os ir para o meio natural. Desde então, até 2017, soltaram-se 27 linces.

Agora, três anos depois da libertação do casal de linces em Mértola no meio natural, o ICNF adiantou, na última quinta-feira em comunicado, que faz um “balanço positivo” da reintrodução da espécie no país, o que “está muito ligado à abundância elevada de coelho-bravo” nos concelhos de Mértola, Serpa e Castro Verde. “Mas o objectivo de uma população viável e estável só será conseguido a médio prazo e após sucessivas libertações que reforcem a presença em Portugal de um dos carnívoros mais ameaçados da Europa.”

Dos 27 linces reintroduzidos em Portugal, três morreram: uma fêmea envenenada em Março de 2015; outra fêmea em 2016 com uma doença infecciosa de felinos; e em 2017 um macho jovem atropelado. Em relação a um quarto lince, uma fêmea, a sua coleira emissora apareceu cortada, embora o corpo do animal nunca tenha sido encontrado. “Em nenhum dos processos em que houve investigação judicial se chegou a conclusão sobre as autorias dos actos ilegais, mas a mortalidade, no conjunto dos três anos, é considerada baixa”, refere o comunicado do ICNF.

Já na natureza, nasceram no vale do Guadiana, entre 2016 e 2017, um total de 16 crias. Monitorizadas com câmaras fotográficas, estão saudáveis e a maioria já é independente dos progenitores, segundo o ICNF. Há ainda a assinalar a presença no vale do Guadiana de dois linces vindos de Doñana, “comprovando a conexão efectiva com Espanha”.

Hoje estima-se que deambulem por Portugal e Espanha 547 linces-ibéricos, incluindo queros que já existiam na natureza quer os que foram sendo reintroduzidos.

Para 2018, o ICNF prevê libertar seis animais, para reforçar a população do vale do Guadiana. Um deles, o “Oregão”, já foi libertado a 23 de Janeiro. Até Março, seguir-se-ão os restantes cinco linces, provenientes de centros de reprodução em Espanha e de Silves.

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Lince-ibérico com as suas crias DR

Também por terras andaluzas

Mas se a reintrodução da espécie ameaçada de extinção tem registado índices de sucesso assinaláveis na região de Mértola, a sua conservação em toda a Península Ibérica continua envolta numa nebulosa de imponderáveis. O biólogo Pedro Sarmento, do ICNF, assinalou na revista Wildlife Biology in Practice, em Outubro de 2016, que as áreas de reintrodução do lince, como é o vale do Guadiana, se encontram em propriedade privada, passível de poder vir a gerar “conflitos com o ‘recém-chegado’ predador”. E descreve as dificuldades que se colocam à sua preservação: “A contínua perda de habitat ocupado pelas actividades humanas, a reduzida abundância de coelho na Península Ibérica e o aparecimento de uma nova ameaça [potencial]: a leucemia felina.”

Em cativeiro, outros factores podem influenciar a morte nos primeiros dias ou semanas de vida dos pequenos linces, como a septicemia neonatal. A insuficiência renal crónica é outra das patologias que afecta os felinos adultos, também cativeiro. Mas é a doença hemorrágica viral do coelho, que reduz as populações desta espécie no campo, que é um grande problema para a conservação do lince-ibérico (e de outras espécies).

Em Dezembro de 2016, cientistas de Espanha, coordenados pela Estação Biológica de Doñana, anunciaram a sequenciação do genoma do lince-ibérico e constataram que tem pouca diversidade genética. Este trabalho confirmou “a baixa diversidade genética do felino por estar confinado à Península Ibérica e também por ter sofrido várias crises demográficas que minaram a escassa riqueza do seu ADN”, adiantou então o coordenador do estudo, Jose Antonio Godoy.

O investigador espanhol destacava, no entanto, a eficácia de medidas de conservação entretanto adoptadas, entre elas o cruzamento entre populações, que melhoraram substancialmente a situação do lince-ibérico e da sua genética.

Mas a reintrodução da espécie em locais que já foram o seu habitat natural suscita inevitavelmente algumas reservas nas zonas onde é largado um animal que estava praticamente extinto. Nem mesmo o vale do Guadiana escapa ao “mau olhado” que ainda se mantém em relação ao predador.

O testemunho dado ao PÚBLICO por João Madeira, produtor pecuário que tem uma exploração em Mértola, patenteia as reservas dos residentes locais. E relata um episódio elucidativo. “Fui confrontado com a morte de 17 borregos, acabados de nascer. Não sabia o que matava os animais, mas percebi pelas reacções das pessoas que o lince era o principal suspeito, a par das raposas. Pedi ajuda aos técnicos do parque natural e foram colocadas máquinas fotográficas furtivas para identificar o autor ou autores. Verificou-se que as raposas apenas levavam os animais mortos. Afinal, era um cão que todas a noites se atirava aos borregos acabados de nascer e não havia qualquer sinal de lince naquela matança.”

Mas nem todos os caçadores estão convencidos e há quem tema a concorrência dos linces na caça ao coelho-bravo. Em Portugal “ainda há muito a fazer no campo da gestão de habitats, reprodução de coelho-bravo e sensibilização das populações”, observa o produtor pecuário.

Consciente do que falta para preencher esta lacuna, a Associação de Defesa do Património de Mértola (ADPM) tem tido iniciativas de divulgação ambiental junto das comunidades locais para que aceitem a nova realidade: o regresso do lince-ibérico a um habitat que já foi seu e reconheçam a sua importância na gestão dos ecossistemas naturais.

Um elemento importante desta aprendizagem reside no outro lado da fronteira, na região andaluza de Guadalmellato, na província de Córdova, que recebeu em Dezembro uma delegação portuguesa liderada pela ADPM.

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A região de Guadalmellato foi escolhida por ser um território onde a reintrodução do lince decorre desde 2009/2010 para recolher informação sobre os procedimentos que os especialistas andaluzes estão a seguir para consolidar a integração da espécie. “Se não fosse a cooperação entre Espanha e Portugal, não era possível reintroduzir a espécie no nosso país”, explicou ao PÚBLICO Nídia Fernandes, técnica de educação ambiental na ADPM, acentuando a necessidade de “partilhar a valiosa experiência dos nossos colegas espanhóis” que levam dez anos de avanço no conhecimento adquirido. Em simultâneo, a libertação de linces no vale do Guadiana irá contribuir para “aumentar a diversidade genética da espécie”, através do cruzamento com exemplares que vivem no parque natural de Donãna, sublinha a técnica da ADPM.

Uma constatação imediata foi realçada pelos técnicos do ambiente da Junta Regional de Andaluzia que acompanharam a delegação portuguesa (composta por proprietários agrícolas, criadores de gado, caçadores e operadores turísticos da região de Mértola): o felino quase desapareceu do meio natural ao longo das últimas décadas devido “à construção de estradas, o desenvolvimento urbanístico e a exploração agrícola intensiva”, além da perseguição dos caçadores que o consideravam um rival na disputa pelo coelho-bravo. E estas ameaças persistem quando se procede à reintrodução do lince nos seus antigos habitats.

Rafael Munhoz, guarda da natureza da Junta de Andaluzia, conduziu a delegação portuguesa até uma elevação de terreno na Serra Morena para mostrar como a presença humana ocupa o território do predador e aponta para um exemplo concreto: uma central solar que se encontra “infestada de coelhos e obviamente de linces”. É um caso de boa vizinhança. Mas o figurino altera-se quando os animais têm de conviver com a população das localidades próximas de Córdova e das extensas plantações de olival.

Em 2006 iniciou-se reintrodução do lince em Córdova. “Agora estão contados entre 60 a 70 linces na região”, diz Rafael Munhoz com uma observação: “Onde há coelhos há linces.” O problema é que a população coelhos “tem vindo a decrescer desde 2013”, frisa o guarda da natureza andaluz. A falta de alimento leva o predador a alimentar-se, por vezes, de perdizes. Pontualmente, também ataca pequenos cordeiros.

“O problema é que há poucos coelhos”, explica Andrés Membribes, proprietário da herdade Barranco Pardo, a poucos quilómetros de Córdova. O agricultor colocou na sua exploração vários abrigos artificiais para coelhos-bravos, para aumentar a sua população, mas não está a resultar. Apesar disso, “com um pouco de sorte ainda podemos ver um lince”, diz à delegação portuguesa. Mas a caminhada revelou-se infrutífera. Não foi visto um único exemplar do predador, mas foram observados os seus excrementos em abundância. O agricultor andaluz assume-se como caçador, mas considera que o lince “é um aliado no couto de caça”.

Noutra exploração agrícola na região Campo Alto, também na periferia de Córdova, o seu proprietário assume um grande carinho e admiração pelo lince, que “é um animal selvagem manso e muito doce”. Também recorre à instalação de abrigos artificiais para coelhos-bravos formados com terra e ramos resultantes das podas de oliveiras e azinheiras e diz que “pelo menos quatro linces caçam permanentemente” na sua herdade. “Há dias vi uma fêmea com a cria e o pequeno a cabriolar. Delicio-me a vê-los, correndo e saltando. É muito bonito.”

Com o passar do tempo, os caçadores e os produtores pecuários andaluzes passaram a proteger o lince. Após a conclusão do projecto Conservação e Reintrodução do Lince-Ibérico na Andaluzia”, fizeram-se 170 acordos de colaboração que resultam na disponibilidade de executar acções para melhorar o habitat para o lince e o coelho numa área com cerca de 180 mil hectares.

Também em Mértola “há uma forte cooperação” com agricultores e associações de caçadores e proprietários de terra, assinala António Barreto, técnico no projecto europeu Iberlince e especialista em ordenamento cinegético: “Perceberam a importância de um predador de topo que afasta outros predadores como a raposa, o saca-rabos ou a gineta.” A presença do lince “diminui a presença destes predadores generalistas”.

Do ponto de vista técnico, Nídia Fernandes reconheceu as vantagens da “ligação entre os agricultores e os nossos colegas andaluzes da protecção da natureza”. E acentuou “o valor da observação no terreno, quando, até aqui, tínhamos apenas uma base teórica”, destacando por outro lado que “a perseguição directa ao lince é um problema em Espanha que não temos em Mértola”. Alguns dos linces atropelados em Espanha tinham bagos de chumbo no corpo, reveladores das tentativas de abate intencional. Os atropelamentos com veículos são a principal causa de morte não natural de indivíduos errantes que procuram encontrar um pouco mais de território ao seu espaço natural. Na Andaluzia, entre 2013 e 2017, morreram atropelados 72 linces. 

O futuro do lince no vale do Guadiana pode ainda ser incerto, mas para João Madeira a presença da espécie em Mértola “é extremamente importante do ponto de vista turístico e ambiental, dado o grau de desertificação humana que ali se observa”.

O PÚBLICO viajou a convite da Associação de Defesa do Património de Mértola

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