“Os direitos humanos permitiram aos ocidentais voltar a locais que eles já não podiam governar”

Reputado historiador e professor da Universidade de Yale, nos EUA, Samuel Moyn olha para os direitos humanos como "uma linguagem adequada para atingir a igualdade de estatutos", mas "uma má linguagem para a igualdade distributiva e até social".

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Samuel Moyn Harold Shapiro

Samuel Moyn é professor de História do Direito na Universidade de Yale. Prolífico ensaísta, activo participante nos debates públicos nos EUA, Moyn é um dos mais reputados historiadores dos direitos humanos. A sua obra Last Utopia: Human Rights in History (Harvard University Press, 2010) constitui um marco fundamental neste ramo da historiografia.

Apesar da generalizada disseminação do conceito nos últimos 40 anos, os direitos humanos não têm sido um tópico privilegiado de inquirição historiográfica. Porquê?
Não creio que tenhamos de explicar uma “ausência de interesse”, porque a maior parte dos fenómenos são suficientemente interessantes para um pequeno número de investigadores, mas não mais do que isso. A questão é a inversa: porque é que, hoje, um número tão grande de investigadores descobriu subitamente que o tema dos direitos humanos merece investigação. Aparentemente, os direitos humanos apenas atingiram um nível razoável de proeminência depois do fim da Guerra Fria, e os historiadores que assistiram à sua ascensão meteórica nos anos 90 começaram imediatamente a especular sobre a história do conceito. Não houve um atraso assim tão grande, dado o tempo que é necessário para os historiadores fazerem a investigação e escreverem os seus livros. Por isso, talvez o interesse dos historiadores seja uma boa pista sobre quão tardiamente foi despertado o interesse do grande público para os direitos humanos.

Que factores explicam melhor essa “ascensão meteórica” após 1989/1991?
O fim da Guerra Fria foi seguramente um factor decisivo. O facto de os direitos humanos terem desempenhado um papel no seu fim e de ideais mais antigos, como os do capitalismo de bem-estar, estarem em desarticulação significou que o sonho da liberdade pessoal face ao Estado — ao invés de outro, sobre o que o Estado deve fazer para garantir uma ampla e razoável solidariedade — prevaleceu. Os direitos humanos eram uma forma bastante edificante de descrever o novo romance da liberdade pessoal.

O que pode a História, enquanto disciplina, trazer de novo? E como pode modelar os debates contemporâneos sobre o tema?
A História relembra-nos constantemente o que o nosso mundo foi e que poderia ainda ser hoje bem diferente. Outras disciplinas não são tão sensíveis à mudança ao longo do tempo e correm o risco de se verem presas numa espécie de eterno presente. Os historiadores são antropólogos que evitam a familiaridade e paroquialismo das nossas sensibilidades, mas por relação com um passado estranho e não com modos de vida distantes. A utilidade de evitar a familiaridade e o paroquialismo é que nos liberta e, desejavelmente, nos ajuda a tomar melhores decisões.

Uma alegação recorrente no discurso público é a de que os direitos humanos evoluíram linearmente desde a Antiguidade, passando pelo Iluminismo, directamente para o presente. O que pensa disto?
Não existia uma concepção de direitos do indivíduo garantidos contra a comunidade e o Estado na Antiguidade; provavelmente nem sequer até ao início da Idade Moderna. Quando o conceito emergiu, ele estava primariamente subordinado ao direito à revolução — derrubar uma autoridade injusta através da acção violenta. Foi desde muito cedo associado à criação de Estados soberanos na medida em que estes criavam um espaço de cidadania para maiorias populares. Num momento mais tardio, a noção de direitos humanos sofreu uma actualização substancial: tratava-se de constranger a soberania, não só a partir de dentro mas também de fora (através do direito regional e internacional) e estava ligada à necessidade de proteger minorias políticas através de meios não violentos e de uma mobilização legal. Posto de outra forma, durante a maior parte da história os direitos foram associados ao nacionalismo revolucionário e à sua globalização. Hoje, os direitos humanos são por vezes a linguagem de um activismo de base, mas mais frequentemente da política elitista e juristocrática. Em resumo, a história dos direitos humanos é maioritariamente uma história de descontinuidades na criação de novas agendas políticas e até a substituição do nacionalismo revolucionário por algo muito parecido com o seu oposto.

Mas, então, porque é que as linguagens, doutrinas e convenções dos direitos humanos, ainda que não a sua vernacularização, surgiram no preciso momento em que surgiram?
Ainda ninguém resolveu o problema do século XVIII: porque é que subitamente os direitos humanos se tornaram as palavras de ordem das revoluções. Argumentei que os direitos humanos se tornaram apelativos porque eram incontroversos e, acima de tudo, porque eles pareciam não exigir os custos morais dos ideais mais populares no século XX: o império, a nação e o socialismo. Aqueles que procuravam um compromisso menos controverso e com menores custos morais viram nos direitos humanos algo apelativo. E havia a sensação de que o mundo tinha de recuperar da luta ideológica do século XX. O problema foi que a adopção dos direitos humanos enquanto ética do fim da história levou a história a recomeçar e os conflitos ideológicos a despertarem.

Argumenta que o abolicionismo não pode ser pensado como um movimento de direitos humanos precoce. Quais são os riscos desta perspectiva?
O abolicionismo foi um fenómeno complexo e muito vasto. Foi primeiramente inventado enquanto crítica por movimentos religiosos e ficou mais tarde associado à expansão do império britânico no século XIX (depois de perder a sua maior colónia esclavagista na América do Norte). Como tal, o antiesclavagismo foi frequentemente um argumento que justificava a ascensão de uma melhor versão do império em detrimento de outras piores — explicando a superioridade do nosso próprio império ou, mais frequentemente, porque o nosso império tinha de moralizar as suas práticas se desejava competir com os outros. Muito raramente o surgimento de argumentos a favor da escravatura se baseou na ideia do direito natural ou dos direitos humanos, mas aconteceu. E algumas vezes a crítica da escravatura evoluiu para críticas da nova economia industrial que substituiu a escravatura — pense-se no ataque de Friedrich Engels à “escravatura do salário”. Os movimentos de direitos humanos de hoje podem justificadamente ver a agitação antiesclavagista como um antecessor, mas apenas se apresentarem a causa original de um modo particular.

Os direitos humanos têm sido muitas vezes apresentados como uma característica distintiva e exclusiva da “civilização ocidental”. Como responderia a esta afirmação?
Não fico particularmente impressionado com esse argumento. Imensas coisas provêm de algum ponto do globo. Mas algumas comportam um apelo universal, outras não. Acho que o principal problema com os direitos humanos não é se são associados a um espaço particular — na medida em que claramente pessoas de outros espaços lhes atribuíram um significado e fizeram uso deles. A principal questão é se eles são suficientemente emancipatórios, seja dentro ou fora da “civilização ocidental”.

Depreende-se que entende que claramente não o são. Porquê?
Eu gosto dos direitos humanos. Mas eles têm uma relação débil com igualdade distributiva e até social. Eles garantem uma igualdade de estatuto. Mas as pessoas não parecem ficar satisfeitas com um Estado que as trata como iguais se isso implica uma crescente desigualdade e um sentido de atomização num mundo em que o consumismo e o ensimesmamento aparecem como os principais vencedores da história.

Os direitos humanos só puderam emergir quando outras utopias perderam a sua capacidade de atracção. A descolonização, nesse sentido, foi um movimento paralelo ao dos direitos humanos. Quais foram as razões para esta dissociação?
A descolonização foi o último suspiro do nacionalismo revolucionário. Mas os seus líderes situaram os direitos humanos como o centro da sua causa muito menos frequentemente que os revolucionários originais de 1776 ou 1789. Muito raramente no sistema internacional os apologistas do anticolonialismo articularam a sua causa nos termos dos “direitos humanos”. Estavam mais interessados em justiça económica a uma escala global. É verdade que elevaram a noção de autodeterminação colectiva ao estatuto de um direito humano, mas ninguém entendeu que isto era central para o processo de descolonização à medida que este se ia desenrolando. Os direitos humanos como uma lingua franca global emergiram apenas depois da descolonização, e principalmente para a domesticar. Antes do fim do império, a resposta por parte dos liberais para um mau governo no estrangeiro era a conquista, mas a descolonização tornou esta opção inviável. Os direitos humanos permitiram aos ocidentais voltar a locais que eles já não podiam governar.

Na década de 50 a descolonização não era necessariamente sinónimo de autodeterminação nacional. Não acha que se os direitos humanos, nomeadamente o princípio da não-discriminação, não tivessem sido incluídos nos repertórios do anticolonialismo este teria perdido algum do seu apelo? À época, por exemplo, para muitos daqueles envolvidos a relação entre os dois parecia inquestionável.
A ideia de que o nacionalismo não era o principal ideal em meados do século XX foi proposta recentemente. Mas eu não estou convencido. Federações dentro de impérios nunca iriam acabar com a hierarquia. Iriam os portugueses, dada a brutalidade empregada durante séculos um pouco por todo o mundo, aceitar viver numa relação de iguais com os seus súbditos em Angola e Moçambique? Não. Não é, pois, de espantar que as populações coloniais estivessem dispostas a incorrer em tanta violência para obter o autogoverno. Praticamente nenhum mencionou os direitos humanos ao fazê-lo. Mencionaram a emancipação colectiva e a autodeterminação. O destino dos povos importava muito mais para o anticolonialismo do que o de indivíduos singulares — por isso os estados pós-coloniais se tornaram tão expostos a críticas. Nem sequer creio que tenha havido muito uso instrumental dos direitos humanos — especialmente direitos humanos internacionais. Não vi a prova, pelo menos.

Sugere que os direitos humanos só se tornaram verdadeiramente globais na década de 70, quase 30 anos depois da declaração. Porquê?
Os direitos humanos foram associados ao seu fiel depositário, as Nações Unidas. Eles não atingiram grande proeminência até os seus princípios serem resgatados ao seu depositário original por novos actores. Esses actores eram organizações não governamentais prestigiadas, tais como a Amnistia Internacional. Por sua vez, esses novos actores emergiram porque causas populares mais antigas, tais como o socialismo internacional, pareciam estar a falhar.

Os direitos humanos nasceram e desenvolveram-se dentro de um enquadramento liberal. Acha que ainda assim é possível conciliar reivindicações de justiça social, racial ou de género com o regime dos direitos humanos ou fazíamos melhor em procurar uma nova utopia?
Os direitos humanos são uma linguagem adequada para atingir a igualdade de estatutos, que estabelece que ninguém pode ser tratado injustamente pelo tipo de pessoa que se é (na base do género, raça ou orientação sexual, nos dias de hoje). Os direitos humanos são uma má linguagem para a igualdade distributiva. Na melhor das hipóteses, os direitos sociais e económicos reclamam por um nível suficiente de garantias no que toca a aspectos importantes da vida — alimentação, acesso à saúde, alojamento e por aí fora. Mas essa garantia é uma coisa muito diferente de uma alocação igualitária de recursos. Não só os direitos humanos carecem de normas igualitárias, eles são também demasiado fracos para formar movimentos igualitaristas. Se estamos preocupados com a igualdade, então precisamos de movimentos diferentes a par daqueles que já temos.

Há, portanto, ligações históricas entre a globalização dos direitos humanos e a do neoliberalismo?
É tão óbvio que essas ligações existem que parece ser inegável. O debate a fazer é sobre que ligações são essas. Os activistas dos direitos humanos envolveram-se num processo de reforma global importante e legítimo, não se apercebendo e só começando a compreender demasiado tarde que se tinham associado a um projecto neoliberal que demonstrou ser muito mais poderoso. As populações em redor do globo tiveram acesso a muito maior liberdade económica do que a liberdade política nos últimos anos. Não há nenhuma razão para os direitos humanos serem um parceiro quase sem poder de um gigante neoliberal. Mas então têm de ajudar a derrubar esse gigante.

Os autores da série História(s) do Presente são investigadores do Centro de Estudos Sociais — Universidade de Coimbra.

Através da revisitação crítica de 12 livros, ao longo de 12 meses, a série História(s) do Presente recupera um conjunto de processos históricos que modelaram inequivocamente o nosso presente. Da longa persistência de modelos de organização concentracionária em “campos” durante o século XX, à recorrente ameaça, proveniente de vários sectores, sobre os fundamentos racionais do conhecimento, passando pelas preocupações relativas ao crescimento demográfico ou à sustentabilidade do planeta, a série oferecerá ao leitor uma visão mais poliédrica dos passados que construíram o mundo como o conhecemos hoje. Para acompanhar sempre no primeiro domingo de cada mês, no P2, caderno de domingo do PÚBLICO

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