“O ‘muçulmano moderado’ é um exemplo de uma ficção simples”

Britânico de ascendência paquistanesa, o activista Raheel Mohammed esteve em Lisboa para participar numa conferência da Fundação Gulbenkian sobre inclusão social. A organização Maslaha, que fundou, tenta dar resposta aos problemas de inclusão das comunidades muçulmanas.

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Raheel Mohammed Rui Gaudêncio

Para Raheel Mohammed, é necessário devolver às comunidades muçulmanas o controlo sobre as suas próprias narrativas, para que possam ser compreendidas em toda a sua complexidade. Só depois de serem criados estes espaços, e resolvidas as desigualdades estruturais que as comunidades enfrentam, se pode falar em integração ou coesão. O britânico de ascendência paquistanesa esteve em Lisboa para participar numa conferência da Fundação Gulbenkian sobre inclusão social. A organização Maslaha, que fundou e a que preside, tenta dar resposta a todas estas questões através de projectos multidisciplinares com as comunidades.

Quais são os principais desafios que as comunidades muçulmanas enfrentam hoje nas sociedades ocidentais?
Um dos maiores desafios é o retrato negativo dos media e a falta de uma narrativa oposta que venha dessas comunidades e que seja igualmente poderosa. Como é que criamos comunidades capazes de contrariar o retrato negativo dos media ou mesmo apenas os estereótipos negativos que existem dentro das instituições, como as escolas, os hospitais ou as prisões? Para mim, esse é um problema muito grande. E acho que temos uma geração de jovens muçulmanos no Reino Unido, mas também no contexto europeu mais alargado, a crescer e a ver-se retratada de uma forma muito, muito estreita. Que impacto psicológico é que isso tem na comunidade? Todo o nosso trabalho [na Maslaha] é sobre ampliar a linguagem e, a partir daí, criar histórias complexas e matizadas sobre essas comunidades, dando-lhes voz. Permitindo que sejam elas a contar as suas próprias histórias, quando actualmente são os outros que as contam. Trata-se de mudar essa falta de equilíbrio de poder.

Existem dados sobre o impacto psicológico de que fala?
Acho que isso é parte do problema. Os únicos dados que temos neste momento são relativos ao aumento do número de jovens muçulmanos nas prisões do Reino Unido. E as últimas estatísticas sobre o Prevent [um programa do Governo britânico destinado à prevenção contra o extremismo], que dizem que a maioria dos indivíduos referidos ao abrigo do programa tinham menos de 20 anos [o relatório, divulgado em Novembro, refere-se ao período entre Março de 2015 e Abril de 2016]. Esta é a estatística. Mas não ouvimos falar do impacto que isso tem nos alunos muçulmanos que foram referenciados pelas escolas e questionados pelas autoridades por suspeitas de extremismo. Não ouvimos falar do impacto que isso tem na família ou na sua comunidade mais alargada. Além disso, mais de 80% destas referências não dão em nada, não têm fundamento. Mas também não ouvimos falar disso. Acho que existe uma lacuna na investigação em termos de preocupação com este problema.

Nos últimos anos, uma série de acontecimentos tem feito crescer a desconfiança face ao islão e às comunidades muçulmanas no Ocidente. Sente-se essa tensão no Reino Unido?
Sim. O número de ataques físicos e verbais contra mulheres muçulmanas, cuja religiosidade é mais visível devido ao hijab, aumentou quase 300% no período de um ano [dados de 2015]. Além disso, o número de muçulmanos presos praticamente duplicou nos últimos dez anos. Actualmente não é radical dizer-se que existe racismo no sistema judicial e que os muçulmanos estão a enfrentá-lo de forma particular. Temos trabalhado com jovens muçulmanos que nos disseram que se tornaram mais religiosos na prisão e que isso tem sido visto como algo a temer [pela sociedade], embora para eles [a religião] fosse uma âncora, algo que os estava a ajudar a enfrentar aquele processo. Por ser um lugar menos público, os comentários racistas por parte dos funcionários prisionais acontecem quase diariamente. Com base no nosso trabalho na área da saúde, também sabemos que existem pessoas em algumas comunidades com medo de aceder aos serviços de saúde mental porque têm receio de ser consideradas radicais ou extremistas, porque os médicos também têm o dever legal de reportar alguém que considerem “suspeito” ao programa Prevent. E as raparigas com quem trabalhamos no projecto Muslim Girls Fence, por exemplo, muitas vezes sentem que são vistas como oprimidas ou facilmente radicalizáveis. Não sei até que ponto é que a sociedade em geral compreende esta sensação de estar constantemente sob pressão. Acho que não fazem ideia.

Esse impacto é maior nas mulheres?
É diferente, em parte porque o hijab torna-as mais visíveis. E porque o corpo das mulheres também sempre foi visto como um campo de batalha: são exóticas ou oprimidas e subservientes, sem que lhes seja dado espaço para serem elas a autodescrever-se. Não há nuances ou vontade de compreender a complexidade daquelas vidas. Acho que isso tem sido um problema ao longo da História, um problema até para as mulheres em geral. Mas tem existido sempre um certo medo do Oriente, de se voltar ao tempo dos otomanos. E quando acontece algum conflito, quando as pessoas têm medo, esses antigos campos de batalha entre o Oriente e o Ocidente, e os estereótipos adjacentes, voltam à superfície.

Sente que o termo “muçulmano moderado” é uma resposta a esses medos?
Falta uma compreensão aprofundada das diferentes comunidades, como se as pessoas tivessem demasiado medo de se aproximar delas para tentarem compreender as suas vidas. Por isso é que existem termos gerais que agrupam toda a gente. E acho que o “muçulmano moderado” é, de certa forma, um sintoma disso. Se acontece um ataque terrorista em Paris, em Londres ou Marselha, há sempre um muçulmano moderado que surge e diz: “Eu sou britânico e sou muçulmano.” Como se fôssemos forçados a aceitar que estas são as duas únicas partes da nossa identidade que nos permitem ter. É quase como se dissessem: “Precisamos de vos conter e este é um bom exemplo de um muçulmano moderado, queremos que sejam assim.” Actualmente, há um debate no Reino Unido sobre os valores britânicos e não é muito interessante. Quem é que decide que valores são esses? O escritor Frank Kermode disse que as ficções simples são o ópio do povo e que, na verdade, são as ficções complexas e difíceis que nos ajudam a descobrir as verdades mais duras. O “muçulmano moderado” é um exemplo de uma ficção simples. É uma forma de não querer entender verdadeiramente a vida destas comunidades.

Há um discurso generalizado sobre a necessidade de integrar estas comunidades nas sociedades ocidentais, o que na maioria das vezes passa pela adopção, em certa medida, dos tais valores britânicos ou europeus…
Novamente, é uma abordagem pouco interessante. Porque, quando as pessoas falam sobre estes problemas em torno da integração, muitas vezes perdem a noção do quadro todo. Por exemplo, um relatório publicado recentemente pela comissão britânica para a mobilidade social mostra que, mesmo que um jovem muçulmano se dê bem na escola e na universidade, é provável que acabe desempregado. É uma desigualdade estrutural que está a afectar a vida daqueles jovens. Por isso não se pode falar em integração, assimilação, coesão e todas essas palavras. Elas não significam nada enquanto coisas como estas acontecerem. A percentagem de jovens “não brancos” nos institutos de detenção juvenil é de quase 50% no Reino Unido e é provável que esse valor aumente. Há um problema enorme de racismo no sistema e, ainda assim, as pessoas falam sobre integração e sobre [a necessidade de] ser mais europeu. É quase como se não quisessem ver as desigualdades mais vastas que estas comunidades enfrentam.

Paradoxalmente, algumas das dificuldades de integração que as comunidades muçulmanas enfrentam ocorrem na relação com instituições públicas, dentro do sistema judicial ou do serviço de saúde. A Maslaha tem trabalhado especificamente este problema?
No Reino Unido, as comunidades asiáticas têm seis vezes mais probabilidade de ter diabetes do que a população geral. É um dado que já se conhece há algum tempo, assim como o facto de que se se combinar informação cultural ou religiosa à informação médica, esta é mais bem compreendida e mais eficaz. Existem muitos trabalhos de investigação que o suportam. Mas a aplicação prática desse conhecimento não é feita de maneira eficaz. Por exemplo, muitos folhetos são em árabe, porque se assume que todos os muçulmanos falam árabe, quando muitos falam urdu, bengali, sylheti. Quando fizemos um trabalho em torno da depressão e da ansiedade, percebemos que não existia nenhuma palavra que traduzisse directamente esses conceitos para aquelas línguas. Como é que uma tradução simples para árabe podia fazer sentido para aquelas comunidades?

Outra coisa que muitas vezes falta é o envolvimento das comunidades durante a elaboração destes projectos. Na Maslaha trabalhamos sempre com elas, porque sabemos que isso dá mais rigor ao produto final e uma maior sensação de propriedade. Os materiais que fizemos neste projecto, por exemplo, passaram a ser utilizados em organizações britânicas, como a Mind ou instituições integradas no Serviço Nacional de Saúde, e internacionalmente, em Queensland (Austrália). E ganharam um prémio internacional de inovação atribuído pela Universidade da Columbia e pela Fundação Rockefeller. Por isso, pergunto: porque é que isto não é feito mais vezes? Penso que tem que ver com quem está em posições de poder nas grandes organizações de beneficência ou nas instituições. Precisamos de mais pessoas com diferentes origens étnicas nessas posições de poder para que as coisas mudem um pouco.

Mas não devia ser o Governo britânico a trabalhar dessa forma?
Devia. Mas a maioria das instituições, governativas ou de beneficência, têm um perímetro de acção e de trabalho muito estreito — educação, saúde, questões de género, sistema criminal —, por isso questiono-me se seriam capazes de encontrar soluções holísticas para estes problemas. O que tende a acontecer é as grandes organizações chegarem, quase como que a saquearem e a desmantelarem as histórias das pessoas, não as envolverem no passo seguinte e depois criarem uma solução muito prejudicial. É um exemplo muito grosseiro e artificial de uma boa prática.

Fala muitas vezes desta necessidade de as comunidades tomarem o controlo da narrativa, mas também da necessidade de ampliar o vocabulário utilizado. Que papel pode ter a arte nestes objectivos?
Uma vez que actualmente existe tanto ruído em torno das comunidades muçulmanas, é preciso encontrar um vocabulário diferente para desafiar essa narrativa. Os workshops do projecto Muslim Girls Fence, por exemplo, tinham a componente da esgrima, mas também giravam em torno da questão da identidade, do que significa ser uma jovem muçulmana nos dias de hoje ou ter voz na sociedade. Do trabalho resultou uma exposição fotográfica e um vídeo. É tão incomum ver uma muçulmana de hijab a segurar um florete, que as imagens obrigam as pessoas a parar e a recalibrar o que estão a ver. É uma forma de estas mulheres iniciarem um diálogo [com a sociedade] a partir da sua própria perspectiva. Aconteceu o mesmo no trabalho ligado à justiça criminal, feito com alguns jovens que tinham estado detidos. Inspirámo-nos nas “pinturas vivas” do final do século XIX para recriar com eles o quadro Experiência com Um Pássaro Numa Bomba de Ar, de Joseph Wright, numa fotografia. O objectivo era utilizar o padrão de linguagem dos poderosos [para desafiar estereótipos] e trazer maior cobertura mediática para o relatório que tínhamos feito sobre o número de jovens muçulmanos no sistema judicial britânico.

A arte é uma segunda escolha, para ter voz nos media, ou é uma escolha por si mesma, uma vez que pode contribuir para alargar os termos do debate?
Penso que as duas coisas. Por exemplo, quando estávamos a filmar em Leicester para este trabalho sobre o sistema de justiça criminal, uma mulher negra abordou-me e começou a contar-me que, quando está em público, evita gesticular muito, porque as pessoas podem pensar que está chateada. Há uma autocensura dos nossos gestos mais naturais. Acho que, em resposta a isto, devíamos ser mais confiantes na forma como nos queremos expressar. Uma vez que não estão a ser criadas oportunidades para que isso aconteça, é preciso encontrar esse espaço de diferentes formas e, de certa maneira, subverter e desafiar os sistemas de poder existentes.

Controlar a narrativa é também controlar a História? Ou, pelo menos, ter espaço para dar uma perspectiva diferente da mesma?
Sim. Um dos nossos projectos, Book of Travels, procurava fazer precisamente isso. Através da história de Evliya Celebi, um viajante, poeta, músico e militar otomano do século XVII, explorávamos a troca de ideias na medicina, na arquitectura ou na música que existia na altura entre o Oriente e o Ocidente; também como forma de desafiar as falsas dicotomias entre as duas civilizações. Acho que, actualmente, o debate tenta apagar todo esse conhecimento histórico e apresentar as comunidades como se elas tivessem aterrado aqui há 20 ou 30 anos. Mas há um arquivo histórico muito rico que devíamos estar a utilizar nas escolas ou para compreender como é que estas sociedades trocavam conhecimento entre si. Mas também para perceber como, ao longo da História, as pessoas que se sentiam descontentes ou oprimidas se revoltaram e tentaram mudar os sistemas sociais. Não só conhecer o trauma que enfrentaram mas também a criatividade, a coragem e as competências que tiveram de encontrar para lidar com a discriminação. É importante passar esse conhecimento às gerações futuras, porque daqui a 20 ou 30 anos existirá outra comunidade minoritária a ser vista como um problema ou ameaça.

Que conselhos tem para quem quiser implementar a abordagem da Maslaha em Portugal?
No final do debate [na Gulbenkian], alguém me dizia que a maioria das pessoas não aceita abertamente que existe racismo em Portugal, por isso acho que talvez esse seja o primeiro passo. Essas comunidades têm possibilidade de expressar as suas frustrações, os medos ou aquilo que consideram estar errado na sociedade? Existem plataformas para que isso aconteça? Quando isso acontece, há um caminho prático para encontrar soluções que envolvam essas comunidades? Como é que a História é ensinada nas escolas portuguesas? Como é o passado colonial contado às crianças? São questões muito interessantes. Não creio que no Reino Unido façamos um trabalho suficientemente bom nesta área. Tem tudo a ver com educação, diria, e com esses primeiros passos que têm de ser dados para que as pessoas possam expressar os seus problemas e ser ouvidas.

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