Disputa de 2,4 milhões entre as Finanças e a ERSE acaba em tribunal

O anterior regulador da energia, Vítor Santos, e dois dos seus ex-vogais, Ascenso Simões e José Braz, foram condenados pelo Tribunal de Contas a entregar ao Tesouro 2,4 milhões de euros por terem recusado transferir saldos de gerência da ERSE para os cofres do Estado, em 2010, defendendo que o dinheiro pertence aos consumidores de luz e de gás.

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Vítor Santos era o responsável máximo da ERSE dro daniel rocha
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Ascenso Simões era vogal do regulador da Energia Nuno Ferreira Santos

A lei aprovada em Junho de 2010, no final do segundo Governo de José Sócrates, “para reforçar e acelerar a redução de défice excessivo” continua a ser uma nuvem negra sobre a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) e em particular sobre três dos seus ex-administradores.

O braço-de-ferro travado então por este regulador com as Finanças e a sua recusa em transferir para o Tesouro 85% dos saldos de gerência acumulados até 2009 – no valor de 2,44 milhões de euros – deram origem a um processo que está a correr no Tribunal de Contas (TdC). No entanto, quem se senta no banco dos réus não é a ERSE e sim o anterior presidente, Vítor Santos, e dois antigos vogais, José Braz e Ascenso Simões, que estavam nos cargos quando a decisão foi tomada. Estes três ex-reguladores foram recentemente condenados ao pagamento de uma multa individual de 2550 euros e à “reposição solidária” dos 2,44 milhões de euros (mais os juros legais), confirmou ao PÚBLICO a Procuradoria-Geral da República (PGR).

Depois de uma primeira sentença absolutória do TdC, em Junho, o Ministério Público interpôs recurso para o plenário de juízes da 3.ª Secção deste tribunal e a sentença foi revogada, “tendo os demandados sido condenados” em Outubro, explicou a PGR. Vítor Santos (que depois de deixar a ERSE voltou a dar aulas no ISEG), Ascenso Simões (que é deputado do PS) e José Braz (que regressou à Autoridade da Concorrência, onde é assessor) reclamaram, mas a reclamação “foi indeferida”. Neste momento, “encontra-se interposto recurso pelos demandados para o Tribunal Constitucional”, que ainda está “pendente de despacho de admissão”, acrescentou a PGR. O PÚBLICO não conseguiu obter comentários dos antigos gestores da ERSE.

No cerne do processo está precisamente uma acusação de incumprimento da Lei n.º 12-A/2010 (que definia, entre outras normas, que em 2010 constituía receita do Estado 85% dos saldos de gerência dos reguladores acumulados em 2009) e a convicção do Ministério Público de que os ex-administradores da ERSE devem ser responsabilizados financeiramente pelo facto de a transferência exigida pela Direcção-Geral do Orçamento (DGO) não ter sido feita.

Dizendo não comentar a acção, precisamente porque não é parte, a ERSE sintetizou, numa resposta enviada ao PÚBLICO, que “o que está em causa no processo que corre no TdC resulta da divergência da aplicabilidade à ERSE de disposição legal aprovada em 2010 que impunha, para algumas entidades, a entrega do saldo de gerência ao Estado (e não aos consumidores)”.

A ERSE nota ainda que todos os seus saldos de gerência “posteriores a 2005 estão depositados no IGCP, por tal lhe ser imposto legalmente” e que o valor acumulado entre 2006 e 2016 foi de 11,6 milhões. Assim, embora os 2,44 milhões estejam depositados no IGCP (a agência que gere a tesouraria pública), uma vez que a entidade reguladora não é demandada no processo, aparentemente será aos seus três ex-gestores que caberá, em caso de condenação efectiva, repor o valor, tal como é requerido pelo Ministério Público (que os acusa de terem decidido “voluntariamente” não  transferir o dinheiro, “cientes de que esta sua conduta era ilícita, proibida e financeiramente sancionável”).

Ainda assim, a sentença de absolvição (entretanto revogada) da juíza-conselheira Helena Ferreira Lopes revela que – “face à propositura da acção” e por “solicitação dos demandados” – a ERSE decidiu que, se vier “a ser definitivamente decidido pelo TdC que esse montante deve ser entregue nos cofres do Estado (…), diligenciará no sentido de promover a transferência”.

Antes que a notificação da acção chegasse aos ex-responsáveis da ERSE, em Fevereiro do ano passado, e tal como é possível reconstituir pela consulta da sentença favorável (o acórdão de condenação, que segundo a PGR tem data de Outubro, ainda não foi divulgado), para aqui chegar houve uma longa interacção entre a ERSE e as Finanças. E esta culminou em 2013 com a recusa do regulador em atender ao ofício da Inspecção-Geral de Finanças (IGF) a solicitar a entrega dos 2,44 milhões de euros, amparada em pareceres jurídicos e nas posições do seu conselho consultivo (CC).

Lê-se na sentença que em Julho de 2010, pouco depois da publicação do diploma, a ERSE escreveu ao então secretário de Estado adjunto e do Orçamento, Emanuel Santos, “a solicitar a dispensa do cumprimento” da medida de transferência dos saldos de gerência. A ERSE baseava-se “no disposto no Artigo 50.º do Decreto-lei n.º 97/2002 [os seus estatutos], que determina que o seu orçamento é financiado pelos consumidores” de electricidade e gás natural, e defendia que esse dinheiro não poderia ser utilizado para outra finalidade que não sustentar o seu funcionamento. Mas a DGO contrapôs dizendo não haver fundamento para a “não aplicação das normas orçamentais em vigor à ERSE” e considerou que o dinheiro deveria ser transferido. Esta informação da DGO foi seguida de um despacho do secretário de Estado (em Outubro) a dizer que a ERSE devia “dar cumprimento à lei”. Face a isto, a ERSE pediu ao CC (um órgão no qual, entre várias entidades, estão representantes do Governo da área das Finanças, Energia e Ambiente) uma posição sobre a aplicabilidade da medida e este, em Novembro, reiterou que os saldos de gerência deveriam reverter para os consumidores.

Em Janeiro de 2011, depois de a ERSE ter comunicado esta posição, a DGO voltou a pronunciar-se, sustentando que, além de já haver um despacho do secretário de Estado sobre o tema, não havia fundamento legal para que a ERSE fosse isentada da medida, remetendo o caso para a IGF. Foi já em resposta a pedidos de esclarecimento da IGF que a ERSE apresentou um parecer jurídico da sociedade Paz Ferreira e Associados em que se defendia que as normas “referentes a cativações e reversão de saldos de gerência não têm qualquer razão de ser quanto aos serviços e organismos com autonomia financeira integralmente financiados por receitas próprias que lhe estão consignadas – como é o caso da ERSE”. Os juristas sustentavam ainda que, “se as receitas das contribuições pagas em excesso [pelos consumidores] não podem ser retidas pela ERSE, muito menos podem ser retidas pelo Estado e utilizadas para financiar os gastos do Estado”.

Foi no mesmo sentido que se voltou a pronunciar o conselho consultivo da ERSE, já em Abril de 2013, depois de a IGF ter finalmente enviado ao regulador, em Fevereiro, um ofício a solicitar que procedesse à entrega dos 2,44 milhões de euros. O “edifício jurídico do sistema energético e regulatório português deve basear-se no princípio da separação de funções entre o Estado e as actividades reguladas, não sendo correcta, nem aconselhável, qualquer comunicação de receitas entre ambas”, afirmou então o CC. Recordando caber à ERSE, “nos termos dos respectivos estatutos aprovados por lei, assegurar a defesa dos direitos dos consumidores”, o CC defendeu que, “se necessário” fosse, o regulador deveria “diligenciar no sentido de assegurar a defesa das posições que convictamente tem vindo a assumir”.

O parecer, que foi votado por maioria e sem votos contra, teve, no entanto, uma particularidade. A representante das Finanças, Maria Paula Mota, absteve-se sobre todo o documento. Na sua declaração de voto reconhece que, na qualidade de membro do CC, “partilhou o entendimento quanto ao princípio da devolução” dos saldos de gerência aos consumidores, “manifestado inequivocamente, por diversas vezes” em pareceres anteriores. Contudo, ao ter “tomado conhecimento” do “parecer da IGF, homologado pelo secretário de Estado do Orçamento” em Novembro de 2012 (o cargo já era então ocupado por Luís Morais Sarmento, no Governo de Passos Coelho), Maria Paula Mota “ficou ciente da posição oficial defendida” pela instituição que representava e, por isso, considerou “não ser pertinente qualquer tomada de posição que não seja remeter para essa mesma decisão à qual se encontra vinculada”.

Se os estatutos da ERSE sempre deixaram claro que o seu orçamento é financiado quase na íntegra pelos consumidores de energia e que não recebe transferências do Orçamento do Estado, foi só na redacção que lhes foi dada em Junho de 2013 que ficou fixado que os saldos de gerência devem reverter para os consumidores. É isso que leva a juíza-conselheira a considerar que “tendo, posteriormente à prática do imputado facto infraccional, entrado em vigor normas que atribuem à ERSE o poder-dever de reverter a favor dos clientes de electricidade e de gás natural os saldos de gerência, através da dedução dos saldos à tarifa, não podem os demandados ser condenados em responsabilidade financeira sancionatória”. Acrescenta a juíza: “Mesmo que considerássemos que a conduta dos demandados era, à data, punível (…), esta terá deixado de o ser [pela introdução do] poder-dever [de fazer reverter os saldos].” “Daí que, por imperativo constitucional (…), a consequência seja o não sancionamento retroactivo das condutas dos demandados”, lê-se na sentença. No entanto, com o recurso do Ministério Público que a fez revogar e condenar os ex-administradores da ERSE, o entendimento do TdC sobre a matéria mudou, faltando agora saber se Vítor Santos, José Braz e Ascenso Simões podem recorrer da decisão junto do Tribunal Constitucional.

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