Um pequeno passo em frente ou mais um passo para o lado?

Os Jogos Olímpicos de Inverno em Pyeongchang, que começam na sexta-feira, são mais um exemplo de diplomacia desportiva entre Coreia do Norte e Coreia do Sul, países que, formalmente, continuam em guerra. Recordamos outros momentos em que houve alguma unidade e muita rivalidade.

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Nos Jogos do Rio de Janeiro, em 2016, houve um momento de aproximação entre duas ginastas captou a atenção do mundo, quando Lee Eun-jun, sul-coreana, tirou uma selfie com Hong Un-jong, norte-coreana Dylan Martinez/Reuters

Se houvesse apenas uma Coreia, como seria essa nação desportiva? Mais ou menos que a soma das suas partes? Numa simples conta de somar, uma hipotética Coreia unificada seria o 14.º país no medalheiro dos Jogos Olímpicos de Verão (318 medalhas, com 48 medalhas de ouro), atrás de dois países que já não existem (União Soviética e República Democrática da Alemanha) e sem qualquer participação nos Jogos antes de 1948. A partir da próxima sexta-feira, em Pyeongchang, na Coreia do Sul, já não será apenas uma questão teórica. Pela primeira vez na história dos Jogos Olímpicos, haverá uma equipa com coreanos dos dois lados do paralelo 38. Estes Jogos de Inverno não serão palco de uma fusão desportiva total (apenas no hóquei no gelo feminino), mas esta iniciativa pode funcionar como a faúlha de uma unificação mais alargada. E, tal como aconteceu no passado, as duas Coreias desfilarão juntas debaixo de uma única bandeira.

Será esse o significado histórico dos Jogos Olímpicos de Inverno de Pyeongchang, os segundos a realizarem-se em território coreano três décadas depois de Seul 1988. A cerimónia de abertura terá uma única comitiva a desfilar no estádio olímpico – como já acontecera em Sydney 2000, Atenas 2004 e Turim 2006 – com uma bandeira com fundo branco e um mapa azul da península coreana e que será transportada por um coreano de cada lado (serão um homem e uma mulher). Claro que um dia antes, em Pyongyang, haverá uma parada militar para Kim Jong-un mostrar a máquina de guerra norte-coreana em todo o seu esplendor e relembrar ao mundo que tem um botão nuclear (mas o de Donald Trump, segundo o próprio, é maior).

Esta será uma comitiva desigual, tendo em conta a tradição das duas Coreias nos desportos de Inverno. Pode considerar-se a Coreia do Sul como uma potência na patinagem, sobretudo na velocidade, em que conquistou 51 das suas 54 medalhas nos Jogos de Inverno, e será nesta disciplina que terá as suas maiores esperanças de ganhar medalhas perante o seu público. E, na sua condição de país organizador, tem direito a apresentar atletas e equipas em todas as modalidades – vai ter, por exemplo, equipas femininas e masculinas na competição de hóquei no gelo pela primeira vez.

Já a Coreia do Norte pouca ou nenhuma tradição tem nos desportos de Inverno. No medalheiro, apenas uma medalha de prata e outra de bronze, ambas na patinagem de velocidade. Desportivamente, o país apenas conseguiu qualificar um par na patinagem artística, mas não o inscreveu para os Jogos porque ainda não estavam concluídas as negociações entre Seul e Pyongyang para a presença de uma comitiva norte-coreana em “território inimigo”. Quando houve acordo, o Comité Olímpico Internacional permitiu a inscrição dos dois patinadores, para além de incluir mais dez atletas em outras modalidades e a formação de uma selecção feminina de hóquei conjunta, com 23 jogadoras do Sul e 12 do Norte – entre os seus jogos da fase de grupos, a selecção coreana vai ter pela frente a equipa do Japão, o que, por si só, será um confronto histórico e politicamente carregado.

Apupos ou aplausos?

Esta aproximação desportiva não é um assunto consensual, a avaliar pela recepção com alguns apupos das jogadoras do Norte aos treinos da equipa, e só na cerimónia de abertura se verá como o público reage – haverá gente a aplaudir os atletas do Norte, já que, para além de atletas e dirigentes, Pyongyang vai mandar adeptos. Sondagens realizadas na Coreia do Sul indicam que a maioria da população não acredita que esta diplomacia desportiva tenha efeitos nas relações entre os dois ocupantes da península. Moon Jae-in, o Presidente sul-coreano, tem um investimento pessoal nesta aproximação olímpica. Ele próprio é filho de refugiados da Coreia do Norte do tempo da guerra, no início dos anos 1950.

Se Pyongchang vai melhorar as relações entre as duas Coreias, ou se vai continuar tudo na mesma, só o tempo dirá, mas estes segundos Jogos coreanos já representam um passo em frente em relação aos Jogos de Verão em Seul 88. Quando a Coreia ganhou a organização do evento em 1981, derrotando na votação a cidade japonesa de Nagoya, o país era uma ditadura e os Jogos eram vistos como forma de legitimar o regime aos olhos do mundo. Em 1986, houve uma tentativa de que estes Jogos fossem uma organização conjunta Norte-Sul e de que houvesse uma equipa única, divisão equitativa dos eventos e duplicação das cerimónias de abertura e encerramento. Não houve acordo e Pyongyang decidiu-se pelo boicote. As relações ficaram ainda piores depois de um atentado promovido pelo Norte num avião da Korea Air que provocou a morte de 115 pessoas.

Diplomacia pingue-pongue

Em 1991, duas equipas unificadas da Coreia participaram em grandes eventos, uma com grande sucesso, outra com sucesso relativo. Nesse Verão, Portugal foi o palco de um desses momentos, como organizador do Mundial de futebol sub-21, que seria de grande significado para o futebol português, a segunda fornada da “geração de ouro” e o segundo título consecutivo na categoria. Foi também nesse Mundial que surgiu uma selecção coreana única, com dez jogadores do Sul e oito do Norte, que chegou aos quartos-de-final, depois de ter sido segunda num grupo onde estavam Portugal, Argentina e República da Irlanda.

Se esta era uma selecção feita à pressa (a decisão fora tomada poucos meses antes), não se notou em campo. “Um dos pontos positivos desta selecção asiática foi a sua organização e trabalho de equipa”, lê-se no relatório da FIFA sobre o torneio. Tal como a península, a equipa estava dividida ao meio. Guarda-redes e defesa eram do Sul, o ataque estava entregue ao Norte. E a organização coreana chegou para ganhar à Argentina e empatar com a Irlanda (perdeu com Portugal), mas foi curta para o Brasil nos “quartos” (derrota por 5-1).

O grande sucesso da Coreia unificada para efeitos desportivos também aconteceu em 1991, igualmente num desporto com bola. Foi no Mundial de ténis de mesa, em que as mulheres da Coreia unida ganharam a final por equipas à China, que é a grande potência da modalidade, e este foi um feito amplamente celebrado pelos dois lados. Deu um filme, mas não muito mais que isso, tanto que as duas atletas que venceram em par um dos jogos da final, Li Bun-hui (Norte) e Hyun Jung-hwa (Sul), não voltaram a ter qualquer contacto desde 1991 e só se vão reencontrar em Pyeongchang.

Com estas duas excepções, os encontros desportivos da Coreia têm sido como adversários e nem sempre nos melhores termos, como aconteceu, por exemplo na qualificação asiática para o Mundial de futebol em 2010, que teria a participação das duas selecções – a rivalidade futebolística é, aliás, uma das mais ferozes da Ásia, com um domínio do Sul no futebol masculino e do Norte no feminino.

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Atletas norte-coreanas debaixo da bandeira da península, durante as Universíadas de 2003 Kim Kyung Hoon/Reuters

Após um confronto entre as duas Coreias na China, a federação norte-coreana acusou a sua contraparte de Seul de ter envenenado os seus jogadores. “Os principais jogadores da República Democrática Popular da Coreia não se conseguiam levantar por causa de vómitos, diarreia e dores de cabeça. […] Pode ser dito, sem qualquer dúvida, que tal foi provocado por um acto deliberado de adulteração dos alimentos”, dizia, em comunicado, a federação norte-coreana, que acusava ainda o árbitro de “trabalho seriamente tendencioso”.

Mas esta foi sobretudo uma reacção institucional, sobretudo para consumo interno, já que as relações entre os atletas sempre que se encontram num qualquer palco desportivo parecem pacíficas. Foram assim, por exemplo, na competição por equipas do ténis de mesa durante os Jogos Olímpicos de Londres em 2012 e que o PÚBLICO testemunhou. “Dizemos ‘olá’ uns aos outros porque falamos a mesma língua. Não há problemas porque o ténis de mesa é algo especial. Temos uma boa relação de amizade, mas durante o jogo é guerra, guerra de ténis de mesa”, dizia na altura um dos jogadores sul-coreanos.

Quatro anos depois, no Rio de Janeiro, um momento de aproximação entre duas ginastas captou a atenção do mundo. Durante um treino a 4 de Agosto, Lee Eun-jun, uma jovem ginasta sul-coreana de 17 anos, pegou no telemóvel com capa de urso e tirou uma selfie com Hong Un-jong, norte-coreana de 27 anos e campeã olímpica de salto em Pequim 2008. A fotografia correu mundo e foi promovida como um símbolo de uma unidade que podia existir entre os dois países. Mas não foi por esta fotografia que as relações melhoraram, que o bem mais desenvolvido Sul iria desejar a reunificação com o pobre e beligerante Norte. Foi apenas isso, um símbolo, como estes Jogos de Inverno em Pyeongchang. Quando os protagonistas da selfie forem os presidentes Moon Jae-in e Kim Jong-un, aí sim, a aproximação será bem mais que simbólica.

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