Primeiro, eram só os geeks da engenharia. Depois, surgiu Ursula Le Guin

O editor John Freeman recorda uma tarde de conversa com a popular escritora norte-americana Ursula Le Guin, "a autora que inventou a ficção científica moderna e que tantos mundos construiu". Le Guin morreu no final de Janeiro, aos 88 anos.

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Ursula Le Guin Beth Gwinn/Getty Images

Ao longo dos últimos 57 anos, uma das imaginações mais originais que alguma vez agraciaram as letras americanas viveu numa casa com 100 anos construída a partir de um kit da Sears.

“Encomendavam-se por catálogo”, explicou-me a proprietária, a escritora Ursula Le Guin, há três anos.

Estamos em fins de 2014 e Le Guin — a autora que inventou a ficção científica moderna e que tantos mundos construiu — está no alpendre da sua casa vendo cair um leve aguaceiro, tão característico de Portland.

“Se calhar, até vendiam a madeira também.”

Foi aqui, no sopé da encosta encimada pela Mansão Pittock, ao lado de outras duas casas do mesmo tipo, que Ursula Le Guin iniciou uma carreira que mudou o rosto da literatura americana.

Na década de 1960, o realismo dominava a escrita norte-americana. A ficção científica era um bastião de geeks da engenharia. E então surgiu Le Guin com uma série de livros que desafiaram a forma como entendemos a civilização, e não apenas a tecnologia.

O principal foi A Mão Esquerda das Trevas, romance de 1969 situado vários milhares de anos no futuro e num planeta ambissexual onde os homens e as mulheres adquirem características sexuais masculinas ou femininas consoante os seus relacionamentos e os seus desejos.

Le Guin não estava só muito à frente na análise da construção social do género. Enquanto a ficção científica se focava no futuro tecnológico, ela escrevia sobre movimentos anarquistas, o modo como as sociedades criam alienígenas no seu próprio seio e as alterações climáticas.

“Um dos muitos memes de hoje em dia poderia muito bem ser: ‘Ursula foi a primeira!’”, escreveu Margaret Atwood num email. E fê-lo escrevendo sobre personagens com vidas interiores profundas e dilemas terríveis. Junot Díaz, autor de A Breve e Assombrosa Vida de Oscar Wao (2009), distinguido com o Prémio Pulitzer, leu os seus livros na escola primária e considerou-os mais que meras cápsulas de salvação. “O que lhe interessava mais, na minha opinião, parecia ser a difícil arte da sabedoria humana, como todos a procuramos desesperadamente e, no entanto, como só poderá alguma vez ser adquirida através do sofrimento, da perda e da responsabilidade — por outras palavras, com o crescimento.”

Em nome de todos

Quarenta e oito anos e quase tantos outros livros depois, o próprio género que Ursula Le Guin tornou seu também cresceu — autores como David Mitchell, Salman Rushdie e Karen Russell passaram pela porta que a escritora abriu — e, em sinal de reconhecimento, ela foi distinguida com um dos mais altos galardões do país, a medalha de carreira da National Book Foundation, um prémio que já foi atribuído a Saul Bellow, Toni Morrison e Joan Didion.

“É mais importante do que eu pensava”, diz-me Ursula Le Guin nesse dia chuvoso, na sua sala de estar, junto de uma estante bem arrumada com livros de Margaret Atwood, Italo Calvino e Virginia Woolf. Os silêncios são pausados pelo tiquetaque de um relógio antigo.

“Depois de o prémio ser anunciado, houve pessoas que me contactaram e percebi que era fantástico, porque foi o reconhecimento, pela primeira vez, de um autor de género com um prémio de monta. Isso deixou-me muito satisfeita porque podia ir lá dizer que o aceitava em nome de todos os autores que, durante tanto tempo, não foram considerados literatura.”

Le Guin não tinha a intenção de escrever ficção científica ou de criar mundos fantasiosos. Fê-lo simplesmente porque estes formatos não a restringiam. “Escrevi neste género porque vendia, mas também porque escrevia o que queria. Na verdade, acho que escrevendo neste género era mais livre do que outros autores que tentavam ter êxito inserindo-se nas correntes dominantes.”

No panteão dos textos americanos mais influentes talvez se encontre uma divisão interessante em autores que se inclinam mais para A Mão Esquerda das Trevas do que para outro romance publicado no mesmo ano, O Complexo de Portnoy, de Philip Roth.

“É um escritor muito masculino. É como se ele não me quisesse no seu mundo”, diz Le Guin, afastando o olhar.

*

Estar sentado a conversar com Ursula Le Guin durante uma tarde foi confrontar-me com uma mente ponderosa que respondeu a aprisionamentos ideológicos ou a solavancos na carreira, construindo um novo espaço para si própria. É vivaz e tem sentido de humor, mas impiedosa quando lhe peço que comente algo que, na sua opinião, não está à altura — como a última obra de Doris Lessing.

“Está tão rabugenta!”, diz, rindo.

Le Guin cedo aprendeu a independência. Nasceu em 1929 em Berkeley, onde o pai, Alfred Kroeber, fundou o departamento de Antropologia na Universidade da Califórnia.

A mãe, Theodora Kroeber, também escritora e antropóloga, escreveu um livro muito influente sobre a vida de Ishi, o último elemento da tribo yahi, da Califórnia.

“Quando já era o último sobrevivente do seu povo, desceu das montanhas do Norte da Califórnia, de uma terreola onde se criava gado, para morrer, porque achava que o iam matar”, conta Le Guin. “Mas os tempos tinham mudado, acho que se estava em 1901, e [alguém] contactou o antropólogo da Universidade da Califórnia: “Temos aqui um índio selvagem!”

“Pediram ao meu pai para escrever a história de Ishi e ele respondeu: ‘Não escrevo livros sobre amigos meus.’” E foi a mãe de Ursula a escrevê-lo.

Havia livros por toda a casa. Os pais liam a Ursula e aos irmãos, que se tornaram todos professores ou autores, cantigas de roda. Portanto, nunca houve um despertar para a literatura — para eles, era tão natural como respirar. Os amigos dos pais eram a força da diáspora em pessoa.

“Berkeley recebeu de braços abertos os refugiados do nazismo e estava repleta de intelectuais exilados, na sua maioria judeus. Foi um lugar extraordinário nas décadas de 1930 e 40.”

Ursula começou a enviar contos de ficção científica para publicações aos 11 anos. Entre os seus colegas na Berkeley High School, estava outro futuro grande nome do género, Philip K. Dick, cujos livros Blade Runner, Desafio Total e Relatório Minoritário se tornaram enormes êxitos no cinema. “Ninguém o conhecia!”, diz Le Guin, rindo. “Ninguém da minha turma se lembra dele nesse tempo. Nem há fotografia no Livro do Ano. Era o rapaz invisível. Não sei se era doente ou assim. Não percebo.”

Le Guin admite prontamente que teve uma infância privilegiada. Também reconhece que era impossível não se aperceber de que, nas décadas de 1930 e 40, havia outros americanos que não tinham tanta sorte. “A pobreza era muito mais visível nos anos [19]30.”

“Não era só nas cidades, mas por todo o lado havia miúdos sujos e mal vestidos. Que andavam ao deus-dará. Havia pessoas com roupas esquisitas porque não tinham outras. Hoje em dia, mesmo pessoas que têm fome e são muito pobres conseguem ter um aspecto decente. Nos anos 30, acho que a vida era muito mais difícil.”

Entretanto, o seu próprio rumo tornou-se mais definido. “Tudo o que eu queria era escrever livros. O meu pai conversou comigo, quando eu tinha 15 ou 16 anos, e disse-me que ia ser muito difícil sobreviver como escritora, que tinha de ter uma profissão. E eu respondi: ‘Mas adoro aprender línguas, podia ser professora.’ E ele disse que estava bem.”

No final da década de 1940, Le Guin viajou para leste para estudar na universidade, em Radcliffe College, onde cursou Literatura Francesa e Italiana. Entre os seus colegas, estava a grande poetisa, já desaparecida, Adrienne Rich. “Conheci o namorado dela. Ele adorava-a! Nunca conseguiu esquecê-la. Quando ela se tornou lésbica, ele não queria acreditar. E dizia: ‘Mas ela costumava dançar em cima das mesas!’ Pobre rapaz, ficou destroçado.”

De Radcliffe College, Ursula foi para Columbia, para fazer um mestrado em Literatura, e daí para França, com uma bolsa, a fim de prosseguir os estudos. Parecia aguardá-la uma vida na academia. Mas conheceu então o futuro marido, Charles Le Guin, professor de Inglês, na viagem transatlântica. “A maior parte [dos estudantes no navio] ainda eram universitários. Nós não. Por isso, ele era a única pessoa que queria beber um copo depois do jantar, e conhecemo-nos. Fomos até ao bar.”

Casaram pouco tempo depois de desembarcarem e estiveram juntos desde então, tendo criado três filhos ao longo dos 50 anos de Charles como professor e dos quase 50 livros de Ursula Le Guin. As fraldas não a assustaram, como aconteceu com tantos escritores homens. “Costumava escrever entre as 10 da noite e a meia-noite, e tinha três filhos, o que nos consome o dia quase todo. Não teria conseguido se o Charles não tivesse sido tão cooperante. É impossível criar três filhos e escrever a tempo inteiro, impossível. Mas duas pessoas conseguem ter filhos e ocupações a tempo inteiro.”

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Não foi fácil para Le Guin ver os seus livros publicados. Os cinco primeiros foram rejeitados pelas editoras, tal como inúmeros contos. Mas ela não desistiu. Resolveu até pedir a um amigo do pai, o editor Alfred A. Knopf, que publicava desde Albert Camus a Thomas Mann, que lesse um manuscrito. Ele leu, a resposta foi também um não.

“É curioso que fecharem-nos as portas nos dá uma espécie de liberdade”, diz Le Guin hoje. “Estou do lado de fora dos portões? Ok, então vou fazer o que me der na real gana.” No seu caso, isso significou inventar um país no centro da Europa chamado Orsinia e toda uma civilização à sua volta. (Mais tarde, reuniu os contos em Orsinian Tales.) A dada altura, Le Guin começou a brincar com a ficção científica, e as suas histórias foram aceites. A Mão Esquerda das Trevas foi o seu sexto livro, um enorme êxito, vendendo milhões de exemplares.

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Com a visibilidade veio a proeminência e um novo poder para as suas ideias. Le Guin admite que chegou tarde ao feminismo, deparando-se com a sua terceira e ruidosa fase. “Foi uma mudança de mentalidade completa. E eu era uma mulher adulta, com filhos. As mulheres de família não eram bem-vindas para muitas das primeiras feministas. Eu estava a viver o pesadelo, era mãe. Sabe, há sempre preconceitos num movimento revolucionário. Eu nem sequer tinha a certeza de ser bem-vinda. E não era, para algumas delas. Tive de reflectir muito até perceber que tipo de feminista podia ser e por que queria ser feminista.”

A reviravolta feminista de Le Guin só chegou no final dos anos 70, quando publicou Expulsos da Terra, a sua primeira obra com uma mulher como personagem principal. A meio da escrita, a sua heroína morre e Le Guin tem um bloqueio criativo. Compra a Antologia Norton de literatura feminista e descobre que é “capaz de escrever do ponto de vista de uma mulher em vez de usar um ponto de vista masculino, como quase todos os autores faziam. Provavelmente, Atwood fê-lo antes de mim. Foi uma feminista mais consciente e assumida mais cedo que eu”.

Atwood e Le Guin conheceram-se não muito depois disso, numa conferência, e corresponderam-se — debatendo, por vezes — desde então. Embora Le Guin queira sobretudo ser tratada simplesmente como escritora, fica irritada quando os autores desvalorizam a ficção científica. “Tivemos discussões muito acesas sobre o facto de ela escrever ficção científica e recusar-se a chamar-lhe ficção científica.”

Surpreendentemente, Le Guin recua e elogia Atwood: “Mas acho que ela escreveu excelente poesia e ficção feminista antes da maioria. Voltei a ler A História de Uma Serva para ver se mantinha a sua força, e mantém.”

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Se, nalgumas frentes, Le Guin levou tempo a aderir ao presente, noutras, o mundo arrastou-se penosamente atrás dela. “Fico irritada quando as pessoas dizem como fui visionária por falar de alterações climáticas e desestabilização do clima e da degradação do mundo natural nos anos 60. Não fui! Limitei-me a ouvir o que diziam os cientistas.”

Havia outras coisas em falta na ficção científica de então, aponta Le Guin: a Internet, para começar, e, antes ainda, a bomba atómica. Para a autora, a tecnologia não se resume a uma questão de moralidade dos seus utilizadores: “Uma arma é realmente neutra? O veneno é realmente neutro?”

“É como a loucura que se está a passar no Sul do Oregon, estão a envenenar as pessoas que vivem perto de áreas desflorestadas espalhando veneno com helicópteros. Para quê, santo Deus? Que erva daninha justifica matar cães e pessoas? Acho que é por isso que fui sempre uma autora de ficção científica rebelde, porque nem sempre o que me interessava eram as tecnologias, mas a ciência. Tenho uma fé considerável na ciência — não uma fé cega, claro, mas os cientistas têm. Se não estiverem nas mãos de empresas, eles tentam mesmo pensar bem nas coisas. E a maioria de nós não o faz.”

Num mundo inundado de êxitos de bilheteira sobre as alterações climáticas e séries televisivas sobre zombies e o apocalipse, Le Guin dizia que estamos a representar os nossos medos, mas continuamos a não lhes dar importância. “Penso que temos medo do que realmente está a acontecer mas, nos filmes, isso não é real, e podemos desfrutar de toda aquela violência e destruição sem encararmos o que estamos a fazer. Acho que é da natureza humana, não estou a querer julgar as pessoas. Mas temos muita dificuldade em ser realistas em relação aos nossos actos.”

A grande fronteira da fantasia está, no entender de Le Guin, mesmo à nossa frente: a velhice. “Há muitos bons livros sobre o que é ter 60 ou 70 anos. Isso é fácil, porque ainda se tem força e energia.” Mas para lá disso — na idade que tinha então —, sentia-se em terreno aberto.

“Tenho agora 85 anos e, em linguagem técnica, estou na quarta idade. E ainda não se escreveu muito sobre isso, em parte porque alguns de nós vão morrendo ou estão doentes. Portanto, esta idade é retratada por pessoas que não são velhas, que imaginam o que é ser velho, mas não percebem bem.”

Haverá tempo? “Sempre que terminava um livro, pensava: ‘Pronto, acabou-se, estou esgotada.’ Mas aparecia sempre alguma coisa.” Agora, acha que a poesia é mais fácil. Estava prevista a publicação de um novo livro de poemas seu. Le Guin encolheu os ombros como quem diz, que outra coisa poderia ela fazer?

“Faço parte de um pequeno grupo, somos oito. Escrevemos e lemos uns para os outros.” Faz lembrar o contar de histórias regressado ao seu momento mais primário e elementar: pessoas que se entretêm a lançar sobre as outras a luz da sua imaginação.

John Freeman é o editor das antologias Freeman's e autor de How to Read a Novelist e Maps, uma colectânea de poemas

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