Uma música da desolação

De novo um texto de um dos mais relevantes autores contemporâneos, num espectáculo sensível e inteligente, dois atributos característicos da dupla carreira de Manuel Wiborg como actor e encenador.

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NELSON GARRIDO

O norueguês Jon Fosse é reconhecidamente um dos mais relevantes autores teatrais contemporâneos. As suas peças têm em geral um caracter intimista, de “câmara”, com poucas personagens, senão mesmo apenas uma, caso de A Rapariga no Sofá (inédito em Portugal) ou deste O Homem da Guitarra. Dir-se-ia mesmo que esses textos têm algo de “música de câmara”, pela sua musicalidade, nos murmúrios, no sotto voce, na insinuação de uma melancolia mesmo que não isenta de desolação ou até de algum desespero, de uma sensação de falta de sentido das vivências ou de ausência de horizontes das personagens.

Fosse é autor de obras como Inverno, A Noite Canta os seus Cantos ou Sonho de Outono, e em Portugal foi revelado pelos Artistas Unidos que, de resto, na sua preciosa colecção de Livrinhos de Teatro, também publicaram vários textos seus, incluindo aliás este O Homem da Guitarra.

Manuel Wiborg é um actor muito sensível, como o mostrou logo em Greensleeves, de Joyce Carol Oates, em 1994, numa encenação de Jorge Silva Melo, em que representava um jovem seropositivo (usando um gorro à maneira de Tom Hanks em Filadélfia). Depois foi o inesquecível António, um rapaz de Lisboa, personagem titular desse tão marcante espectáculo, escrito e dirigido também por Silva Melo, igualmente realizador de um filme com Wiborg como protagonista, Coitado do Jorge.

Mas Wiborg revelou-se também um inteligente encenador, mormente em dois espectáculos com base em obras não-teatrais, As Regras da Atracção, adaptado do romance de Bret Easton Ellis, e Vou lá visitar pastores, sobre texto do escritor angolano Ruy Duarte de Carvalho, em que de resto estava sozinho em cena.

Agora Wiborg regressou a Fosse, autor que já tinha abordado, com Diogo Dória, em Sou o Vento (texto do qual, aliás, tínhamos visto no Festival de Almada uma encenação de Patrice Chéreau). E regressa com mais idade, é claro, o que seria um desnecessário truísmo se não se desse o caso de essa mais idade ser uma das mais notórias características afirmadas pela personagem única. De resto Wiborg afirma explicitamente no programa do espectáculo: “Interessa-me aquilo que fala da realidade das pessoas. Este texto olha para a classe artística, para a sociedade e sobretudo para as pessoas de meia-idade. Já gostava muito do texto por várias razões, mas a decisão de o fazer prendeu-se com essas questões. O que é a vida de um homem de meia-idade hoje, num mundo imerso num clima vazio de esperança e de futuro? O que é que estas pessoas pensam e sentem?”.

“Sou um homem falhado” diz ele, perdido num fim do mundo, num país com um frio de rachar e uma língua que ninguém compreende, para o qual foi por causa de uma mulher e no qual ficou por causa de um filho. Ganha a vida como músico de rua (surge aliás em palco por uma escadaria de metro ou de uma qualquer passagem subterrânea), mas agora já nem gosta de música e não quer mesmo tocar mais – mas então, que fazer? E lá está a questão, “O que é a vida de um homem de meia-idade hoje, num mundo imerso num clima vazio de esperança e de futuro?”.

Mas o espectáculo tem uma singularidade, a participação de Adriano Sérgio, guitarrista que agora já não toca e se dedica sim à construção de guitarras, omnipresente em palco, com uma cenografia que é da oficina desse construtor. E quando o homem da guitarra sai de cena, esse outro homem de guitarras apresenta-se na primeira pessoa ao público, relata o que fazia e o que agora faz, e explicita que nesse modo de construtor continua afinal a fazer música – e desse modo o real intromete-se na ficção do texto, e esse gesto da encenação repõe, ou prossegue, a reflexão teatral sobre uma existência privada de razão de ser e sem perspectivas.

Não se trata, de modo nenhum, de, a contrário do texto, Wiborg encerrar o espectáculo com uma perspectiva optimista, mas antes de o conjugar com uma concreta realidade e também de assim prosseguir, pela invocação de modos de música, essa insinuante musicalidade do(s) texto(s) de Fosse.

O Homem da Guitarra, estreado no Verão do ano passado no Porto, no Teatro Carlos Alberto, e agora em cena em Lisboa, na Sala Estúdio do São Luiz, é um espectáculo sensível e inteligente, esses dois atributos que são característicos da dupla carreira de Manuel Wiborg como actor e encenador.

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