Convites a Centeno valiam mais do que 150 euros mas a segurança justificava-os

Despacho de arquivamento nota que Ministério das Finanças não tinha poder para interferir na isenção de IMI para prédio dos filhos de Vieira e salienta que o benefício fiscal era automático a partir de uma decisão tomada seis meses antes do Benfica-FC Porto.

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O MP concluiu que a decisão de isenção do IMI do imóvel do filho de Vieira não passou pelo gabinete de Mário Centeno Nuno Ferreira Santos

O Ministério Público (MP) arquivou o inquérito que envolvia os convites do Benfica para o ministro das Finanças, Mário Centeno, na convicção de que nenhum dos três tipos de crimes que poderiam estar em causa foi cometido. O procurador que analisou os elementos de prova e os depoimentos concluiu que a aceitação dos convites em causa se justificava por razões de segurança pessoal e, além disso, “não foi recolhida prova alguma que corroborasse a aventada intervenção do ministro no processo” que permitiu à empresa dos filhos do presidente do Benfica obter a certificação camarária para obter a isenção do Imposto Municipal de Imóveis (IMI) para um prédio que a referida empresa comercializou em Lisboa.  

Segundo o despacho de arquivamento, a que o PÚBLICO teve acesso, o facto de Centeno ter pedido, através de um assessor diplomático do seu gabinete, dois bilhetes para assistir, na companhia do filho, ao Benfica-FC Porto na tribuna presidencial, a 1 Abril de 2017, poderia consubstanciar um crime de recebimento indevido de vantagem. Além disso, estaria em causa, em troca de tais convites, uma eventual intervenção do ministério das Finanças no processo da isenção de IMI devido pela empresa Realitatis, pertencente aos filhos de Luís Filipe Vieira, o que, a comprovar-se, poderia consubstanciar os crimes de tráfico de influência ou de corrupção passiva e activa.

Porém, o MP concluiu que a isenção de IMI decorria automaticamente da aprovação de uma certificação camarária de que o imóvel em causa foi reabilitado, preenchidos os requisitos legais para a obtenção desse benefício fiscal, apontando ainda que essa certificação foi atribuída pela autarquia antes de o gabinete de Mário Centeno ter enviado o pedido de dois bilhetes para o “clássico” entre Benfica e FC Porto. Ainda que contrarie um dos argumentos de um comunicado ministério, dizendo que os dois convites representam uma vantagem patrimonial que ultrapassa o limite de 150 euros previsto no Código de Conduta criado pelo actual Governo, o autor do despacho destaca as questões de segurança pessoal do ministro para concluir que a aceitação dos convites é “enquadrável” legalmente e “portanto, lícita”.

Em investigação esteve o pedido de dois convites para o camarote presidencial do Estádio da Luz para o jogo entre “águias” e “dragões” que tinham como destinatários Mário Centeno e o seu filho. O MP abriu um inquérito depois de notícias sobre este facto e que depois relacionavam esse pedido, em termos temporais, com a concessão de uma isenção de IMI de um prédio detido pela empresa de dois filhos de Luis Filipe Vieira.

Durante a investigação, o MP realizou buscas ao Ministério das Finanças em que foi “apreendida diversa correspondência electrónica” dos computadores de André Monteiro, assessor diplomático de Centeno, e André Caldas, chefe de gabinete do ministro, nomeadamente emails entre Monteiro e responsáveis do clube da Luz relativamente ao pedido dos convites. Ambos foram também interrogados. O MP sublinha que não houve necessidade de interrogar Centeno sobre os factos em causa.

Foram ainda ouvidos uma responsável da Câmara Municipal de Lisboa e um elemento do corpo de segurança pessoal de Mário Centeno, e analisou-se o processo que conduziu à isenção do IMI para o imóvel detido pela Realitatis, bem como correspondência interna da autarquia sobre o processo em causa. A conclusão foi a de que nenhuma decisão relativa ao prédio poderia ter tido intervenção do ministro ou do seu ministério, sublinhando-se a ausência de qualquer referência, quer nos emails entre o gabinete de Centeno e o Benfica, quer no dia do jogo, que permitisse ligar os convites do Benfica e o processo do IMI. Acresce que, segundo o despacho, “não se vislumbraram quaisquer indícios de que tenha sido ‘acelerada’” a aprovação de isenção de IMI, que apenas competia à autarquia, como nota o MP. A documentação tinha estado parada inclusivamente durante três meses, entre Dezembro de 2016 e Março de 2017, a aguardar que fosse distribuída por um técnico “para análise e informação”. O que acabaria por acontecer a 3 de Março de 2017, tramitando depois o processo em 21 dias.

Para o MP, a questão das datas tornava o cenário da intervenção de Mário Centeno “ainda mais improvável” porque o pedido de convites foi formulado e enviado a 17 de Março, “data em que o principal impedimento para a decisão [sobre o IMI] já estava resolvido”. E o depoimento do membro do Corpo de Segurança pessoal do ministro foi relevante para o procurador, pois negou "ter testemunhado alguma conversa ou comportamento de que fosse possível extrair que tal intervenção [de Centeno] foi solicitada ou concretizada".

De acordo com as provas recolhidas, a recomendação de certificação de reabilitação do imóvel da Realitatis tem a data de 18 de Novembro de 2016 e “uma vez autorizada a certificação de reabilitação requerida”, a isenção de IMI “era mera consequência” dessa certificação. A autorização de isenção de IMI viria a ser dada formalmente a 24 de Março de 2017. A técnica responsável pelo processo, quando interrogada pelo MP, afirmou que o pedido não tinha carácter urgente e nunca foi tratado de maneira especial. O MP concluiu ainda que nenhuma fase do processo de decisão passou pelo gabinete do ministro das Finanças.

O MP diz ainda que a necessidade de o ministro das Finanças assistir a um jogo deste tipo na tribuna presidencial é fundamentada, acrescentando que “os elementos do Corpo de Segurança Pessoal da PSP encarregues da segurança do ministro das Finanças tinham, anteriormente, recomendado repetidamente que a assistência, por este, a eventos desportivos fosse, sempre que possível, feita em zona de acesso restrito”. De acordo com a investigação do MP, a 27 de Março já se sabia que Centeno e o filho iriam assistir ao clássico a partir da tribuna presidencial.

“Com efeito, se a única solução que oferecia adequadas garantias de segurança era da assistência ao jogo na Tribuna Presidencial – o que é perfeitamente compreensível, atento o risco do mesmo e o número de adeptos esperado – nunca foi, verdadeiramente, uma hipótese para o referido governante pagar quaisquer bilhetes”, entende o MP.

Ainda assim, o procurador Pedro Roque contraria a tese do Ministério das Finanças manifestada num comunicado enviado à comunicação social no dia em que foram publicadas as primeiras notícias sobre o pedido dos convites para Centeno. Nessa nota, o ministério argumentava que o recebimento dos convites em causa não violava o Código de Conduta criado pelo Governo na sequência do chamado Galpgate pois os convites, “que eram para assistir ao jogo na tribuna presidencial, não são comercializáveis, pelo que não têm um preço de venda definido”.

Ora, no despacho de arquivamento defende-se que é possível entender que os “convites em causa nos autos conferem uma vantagem não patrimonial – por permitirem aos beneficiários assistir a um jogo muito procurado pelos adeptos de futebol, um clássico, com excelentes condições de acesso, segurança, visão”, mas também uma vantagem patrimonial, na medida em que o ministro e o seu filho puderam assistir “ao referido evento sem despenderem qualquer quantia”.

O MP conclui ainda que essa vantagem patrimonial ultrapassa os 150 euros previstos no Código de Conduta, “pois o bilhete mais caro vendido a sócios para esse jogo tinha o preço de € 75”. “Ora, se estavam em causa dois bilhetes e se os lugares da Tribuna Presidencial são, por definição, aqueles com melhores condições, só se pode inferir que o valor, não dos convites, mas da vantagem conferida pelos mesmos, é superior a €150”.

Apesar disso, o MP nota que esta conduta está dentro do que é considerado “socialmente adequado e conforme os usos e costumes”, devido às exigências de segurança resultantes da presença do ministro das Finanças num jogo deste tipo.

O procurador deixa escrito no despacho de arquivamento que “tudo indica que as notícias publicadas a respeito da intervenção do ministro das Finanças na isenção de IMI (…) tiveram origem em fonte desconhecedora da concreta tramitação ou enquadramento legal de tal procedimento, ou de quaisquer factos concretos que, de forma fundada, indiciassem conduta criminosa”.

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