Um cartel fechado em copas

O que se passa mesmo é que a mesa da nossa Assembleia da República se permite chumbar leis que foram aprovadas com os votos presentes em plenário (e vice-versa.

No passado dia 21 de janeiro ficámos a saber, através de um artigo de Miguel Marujo no Diário de Notícias, que na Assembleia da República há projetos de lei que são rejeitados quando há mais votos a favor e outros que são aprovados quando há mais votos contra. Na altura de contar os votos, a mesa da Assembleia decide contar também com os deputados que estão ausentes, e atribui automaticamente os votos destes à bancada parlamentar de que fazem parte. Em Portugal, na sede da nossa soberania, vota-se em corpo mas também em espírito — e, pois claro, como se o espírito pertencesse ao partido.

Esta bizarra situação, singular entre parlamentos dignos desse nome em qualquer parte do mundo, gerou comentários na imprensa e nas redes. Só houve quem ficasse calado onde era mais importante: na Assembleia da República. Nenhum esclarecimento, nenhuma vinda a terreiro para defender a honra do convento de São Bento, nenhuma informação adicional, nada. Um ou outro leitor ainda aventou a hipótese de as contas estarem erradas, por haver dois sistemas de verificação de presenças no parlamento (um eletrónico e outro manual), mas verificou-se não ser verdadeira essa explicação: o site independente hemiciclo.pt, que primeiro detetou esta prática portuguesa de inventar votos de gente que não votou, já faz a despistagem cruzando os dados de ambos os métodos de verificação. Mais revelador do que isso: se estivéssemos perante um problema de interpretação, certamente teríamos visto a Assembleia da República usar do seu direito de resposta para corrigir o erro, e ela não o fez.

Portanto, o que se passa mesmo é que a mesa da nossa Assembleia da República se permite chumbar leis que foram aprovadas com os votos presentes em plenário (e vice-versa). O que se passa mesmo é que os nossos deputados permitem que os seus votos sejam usados à revelia e por atacado no momento mais sagrado da deliberação num órgão de soberania. E quando descobertos a reação que a instituição e os seus membros têm é ficar silenciosos para ver se passam entre os pingos da chuva. Pelos vistos a Assembleia da República acha isto normal, mas não muito normal — porque nesse caso alguém teria a coragem de admitir que acha normal, e ninguém o faz. Tudo considerado, preferem ficar calados à espera que o problema desapareça.

Pois bem, não há ninguém com um mínimo de respeito pelo parlamentarismo que possa achar isto normal. E permito-me lembrar aqui um célebre constitucionalista português que se demitiu do Conselho de Estado em 2001, quando confrontado com a promulgação de uma lei que tinha sido considerada aprovada apesar de uma maioria de votos contra no parlamento (na última vez, portanto, em que uma situação destas ocorreu antes desta legislatura). Esse constitucionalista chamava-se Marcelo Rebelo de Sousa e é agora Presidente da República.

Ou seja, para piorar a situação, a Assembleia da República não se pronuncia sobre uma situação que a deixa fragilizada perante a possibilidade de um veto presidencial da próxima vez que isto acontecer — isto se o Presidente mantiver a mesma opinião sobre a incostitucionalidade deste método que já tinha em 2001 enquanto conselheiro de estado.

Tudo isto é normal quando os partidos começam a achar que o parlamentarismo começa e acaba com eles. E este não é caso único. A comprovar a tendência está, por exemplo, o facto de quatro partidos — PCP, BE, PS e PSD — terem decidido há dias rejeitar a proposta do PAN para que na discussão das alterações às leis de financiamento partidário (que voltaram ao parlamento após um veto presidencial) fossem ouvidos constitucionalistas, associações cívicas e partidos não-parlamentares.

Para quê, terão pensado estes partidos, ouvir quem quer que seja? Correu tudo tão bem da última vez quando as coisas se decidiram à porta fechada! Se houver algum problema, basta acusar quem se queixar de ser um populista anti-partidos.

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