Cidadania activa ainda esbarra na surdez do poder público

Não são muitos os cidadãos que se envolvem activamente na vida das freguesias ou da cidade, mas os que se organizaram ainda não sentem grande receptividade da administração local.

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Esmagadora maioria dos lisboetas não tem qualquer participação cívica Nuno Ferreira Santos

“Viver na cidade é eminentemente um modo de estar político”, diz Maria Augusta Babo, na senda do pensamento de Aristóteles. Mas as estatísticas mostram que, em Lisboa, não são muitos que têm essa consciência. De acordo com um estudo recente sobre qualidade de vida e governação urbana, a esmagadora maioria dos lisboetas não tem qualquer participação cívica e não pertence a nenhum tipo de associação, formal ou informal.

Debaixo do chapéu da participação cívica cabem acções tão diversas como aderir a uma greve, estar numa manifestação, assinar uma petição pública, votar num orçamento participativo ou ajudar o vizinho do lado. Exceptuando este último, em todos os restantes indicadores estudados pela equipa do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS) da Universidade Nova a resposta de mais de 80% dos inquiridos foi “nunca”. E mais de 90% assumem nunca ter participado em reuniões ou consultas públicas das juntas de freguesia ou da câmara municipal.

O problema está nos cidadãos – 46,2% dizem ter “nenhum interesse” por assuntos políticos – mas quem é poder também não ajuda. Pelo menos é essa a percepção daqueles que se organizaram para ter uma voz mais activa na vida da rua, do bairro, da freguesia, da cidade.

“Há espaços políticos no sistema de Lisboa que não estão de todo preenchidos: a área metropolitana e a sociedade civil”, disse João Seixas, especialista em políticas urbanas, no seminário “Viver em Lisboa” que esta sexta-feira se realizou na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Nova. Se não há mais poder na sociedade, isso deve-se à “fragmentação da vida urbana” e a “um fechamento da administração pública” perante os movimentos cívicos que vão surgindo, afirmou.

E, no entanto, existe hoje uma profusão de grupos, formais e informais, um pouco por toda a cidade. “Em Portugal, tradicionalmente, há uma sociedade civil muito fraca. Poucas associações, pouco organizadas”, explicou Rui Martins, do grupo Vizinhos do Areeiro. Mas existe “uma apetência para a participação” que, nos dias que correm, pode começar por um post no Facebook. “Temos de estar onde as pessoas estão. Se elas estão nas redes sociais, é lá que temos de estar”, afirmou o criador daquele movimento, que, entretanto, se foi multiplicando e já tem presença em várias freguesias de Lisboa.

“Nós fomos bastante mal recebidos pelas juntas de freguesia”, disse Miguel Pinto, do Movimento pelo Jardim do Caracol da Penha, que ganhou o Orçamento Participativo de 2016 com uma votação recorde, obrigando a câmara a desistir de construir um parque de estacionamento num local que agora vai ser um jardim. “Havia receio que nós pudéssemos caminhar no sentido de uma candidatura independente ou que estivéssemos a soldo de qualquer partido.”

José Almeida, da Associação de Moradores do Alto do Lumiar, queixou-se igualmente de que as iniciativas “muitas vezes esbarram” no poder público, seja ele qual for. Leonor Duarte, do Morar em Lisboa, contou que, quando este movimento foi lançado, os políticos “não se riram, mas faltava pouco”. E também Rui Martins disse que a junta “ainda tem uma visão muito centralista, focada na figura do presidente”.

Um dos objectivos da reforma administrativa de Lisboa era aproximar os cidadãos das autarquias, mas, segundo o estudo do CICS, isso ainda não aconteceu. “A proximidade não se perdeu, antes ganhou-se”, defendeu Miguel Coelho, presidente da junta de Santa Maria Maior, para quem “a parceria com os cidadãos organizados é absolutamente essencial”. Para o autarca, uma das melhores coisas da reforma foi a escala que ganharam as juntas. “Hoje um presidente não tem de andar a pedinchar, tem outra dimensão”, o que, em seu entender, permite outras respostas, mais eficazes.

Já Fábio Sousa, autarca de Carnide, admitiu que “as pessoas estão cansadas dos meios formais de participação” e que nem sempre “aquilo que os executivos acham que são as prioridades das pessoas” o são de facto. “Quando convidamos as pessoas para vir beber café connosco, aparecem 70 pessoas”, disse, para exemplificar como existe interesse em participar – ele tem é de ser estimulado.

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